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República contra o militarismo

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Era junho de 1893, dois anos após a promulgação da primeira Constituição Republicana. Concebido para ser “liberal” e “federativo”, o país tornara-se, todavia, uma “República da espada”. Vivíamos o jugo de uma ditadura militar imposta pelo presidente Floriano Peixoto, que enfrentava uma revolta da Armada e uma Revolução Federalista no Sul. Governando em Estado de sítio permanente, reprimindo violentamente opositores pela “unidade da nação”, ameaçando de prisão os ministros do STF e fazendo um campo de concentração na Amazônia, Floriano será notabilizado como o “Marechal de Ferro”, tornando-se popular e sendo seguido, com entusiasmo, por “jacobinos” florianistas.

O liberal Rui Barbosa, artífice maior da Constituição, estava em combate contra os descaminhos. Nas páginas deste “Jornal do Brasil”, ele escreve, em 15 e 21 de junho, dois artigos sobre os perigos do militarismo. Em um deles, responde a um professor da Escola Naval, o “patriota” Carlos Sampaio, que o havia criticado, no jornal “O País”, afirmando que “na época atual, político é quase sinônimo de estrangeiro”. Mas, pergunta Rui: chamar um nacional de estrangeiro não seria dizer que há um campo dos desclassificados fora do direito comum? Ora, “todos os violentos fizeram sempre, a seu favor, monopólio do patriotismo. Todos eles têm o privilégio tradicional de patriotas por decreto próprio e patriotas com exclusão dos que com eles não militam”. Era o que faziam, afinal, “a Roma dos césares e a França dos jacobinos, para legitimar os crimes da ambição contra a liberdade [... declarando] ‘inimigos da pátria’ os seus antagonistas”. Rui lembra, assim, de Napoleão Bonaparte e sua “comédia da regeneração da pátria contra a corrupção representativa”, que fez com que o que era visto, pelo olhar exterior, como “o cúmulo do despotismo”, fosse saudado, pela França, como “a vitória das instituições liberais contra a anarquia oposicionista”.

Contra o militarismo, Rui falava, ao mesmo tempo, em favor das Forças Armadas e da República. Em uma excelente frase, ele sintetizou o perigo de uma república militarizada: “os triunfos do militarismo desnaturam as leis, corrompem as ideias, transpõem a lógica e invertem o nome às coisas, preparando o naufrágio dos direitos populares, em cujo nome se anunciam as suas conquistas”. É claro que os militares têm o direito de exercer a cidadania e colaborar com o Estado, pois “a farda não abafa o cidadão no peito do soldado”; todavia, diz ele, o perigo começa quando há uma participação política das Forças Armadas como um corpo constituído que ajuíza politicamente e atua, como tal, no governo.

Quando se experiencia o elixir do poder, corre-se o risco de querer acumular o papel de defensor da soberania nacional com o de executor, de legislador e de julgador da soberania do povo. Por isso, o militarismo é uma “degeneração do espírito militar, do mesmo modo que o ‘politiquismo’ é a corrupção da verdadeira política” e o clericalismo, da religião. Para as Forças Armadas, ele só acarretará “descrédito, ruína e ódio público”. Rui conclui que “entre o Exército e a política se deve, portanto, levantar a mais alta muralha. Evitemos o militarismo e defendamos o Exército”.

Naqueles primevos anos republicanos era impossível prever o protagonismo posterior dos militares em nossa história (o movimento tenentista só ocorreria nos anos 1920); chega a ser profético, assim, ler que “a sociedade, a cuja epiderme [o militarismo] adere, viverá daí em diante dilacerada pelo terrível corrosivo”. Com o retorno dos militares ao centro da cena política atual, a organização, a competência e a experiência militares terão bastante a oferecer aos civis na reforma do Estado e na retomada do desenvolvimento. Mas a prudência de Rui nos alerta para o risco de que colaborações pontuais ressuscitem nosso passado militarista.

Alivia, neste sentido, escutar o presidente eleito dizer, na comemoração dos 30 anos da Constituição de 88, que “na democracia, o único norte é a Constituição”. É esperar que Bolsonaro resista, portanto, ao magnetismo do militarismo e que não queira fazer das Forças Armadas a sua bússola. Caso contrário, nossa mais nova República liberal e federativa, concebida para ser um “Estado Democrático de Direito”, poderá se degenerar em uma “República dos Fuzis” e do mirar na cabecinha.

* Diretor do Ateliê de Humanidades e doutor em Sociologia (Iesp-Uerj)