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Os machistas do kkkk

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“Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos, nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos, sim, deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão (...) desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?” (Brasil, 2018).

“Ninguém sabe quantos rebeldes fermentam as massas de vida que povoam a terra. Supõe-se que em geral as mulheres sejam muito mais calmas: mas as mulheres sentem da mesma forma que os homens; precisam de exercício para suas faculdades e de um campo de atuação para seus esforços tanto quanto seus irmãos; sofrem com restrições rígidas, estagnações absolutas, da mesma forma que sofreriam os homens; e o fato de seus pares mais privilegiados dizerem que elas deveriam se confinar a assar bolos e cerzir meias, tocar piano e bordar bolsas, não passa de mesquinhez. É leviano condená-las ou rir-se delas se elas procurarem fazer ou aprender mais do que os costumes impuseram a seu sexo.” (Inglaterra, 1847).

O primeiro parágrafo é o discurso-tsunami de Fernanda Lima no programa “Amor e Sexo”, dias atrás. O segundo é um trecho do romance “Jane Eyre”, escrito pela inglesa Charlotte Brontë há 170 anos. Recebi os dois no mesmo momento. Enquanto eu lia o romance, as palavras de Fernanda Lima estouraram nas redes sociais e fui atrás para ver do que se tratavam. O sentimento é dúbio. A semelhança de conteúdo revolucionário, antiopressor e reivindicativo é motivo de orgulho da coragem e da resistência feminina que perdura há um século. A necessidade do desabafo, do grito, da urgência em igual intensidade entre os dois discursos, separados por 170 anos, provoca inevitável desalento: um século mais setenta e um anos e a mulher ainda precisa falar alto, entoar firmeza e fazer cara de brava para ser ouvida. Mas o momento é de resistência: em 2018, ninguém mais acredita – “mesquinhamente”, para usar a expressão de Charlotte lá no século 19 – que as mulheres devem “se confinar a assar bolos e cerzir meias, tocar piano e bordar bolsas”. Não, péra!

“(…) e agora vem essa imbecil com esse discurso esquerdista!!! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco e o lado mais fraco hoje é o que ela está. (Parêntesis para explicar que os erros gramaticais, de pontuação não são meus. São do texto original, que está em toda a internet). Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela??(…) o Brasil vai sabotar é a senhora se Deus quiser. Sérgio Moro (Parêntesis para dizer que não vou entrar em questões político-partidárias, porque não é o intuito deste artigo. Portanto, não vou nem comentar o nome citado nesse trecho.) vai começar a ajudar a sabotar, pode esperar kkkk (...)”. Essa foi a reação de um cantor sertanejo, sobre quem eu nunca tinha ouvido falar, ao discurso de Fernanda Lima. Ele postou o texto – que deixo para a cara leitora e o caro leitor adjetivarem da forma que acharem adequada – na rede mundial, para quem quisesse ver. Fernanda Lima recebeu bomba de muitos lados – que só podem ser interpretados como defensores obstinados da homofobia, do racismo, patriarcado, machismo e misoginia, que foi só o que ela criticou – a ponto de bloquear os comentários nas suas redes sociais.

Mas como para todo ódio existe sempre um montão de amor, uma multidão saiu em defesa da atriz. No século 19, Charlotte Brontë escrevia sozinha e assinava com pseudônimo masculino. Sim, a revolução feminista avança! Quanto aos machistas… Uns ficaram enterrados lá atrás com sua certeza de que as mulheres deviam apenas cerzir meias. Outros passam vergonha nas redes sociais com cultura zero e toscos kkkks.

* Jornalista e mestranda em Psicologia Social pela USP