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Do fóssil ao fosso: onde nos perdemos?

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Em certa medida, a biologia nos iguala. Homo sapiens é a espécie à qual todos os que agora leem esse texto pertencem. Embora alguns insistam em refutar ou simular esquecimento, negros, brancos, mestiços, ricos ou pobres integram grupo comum. Ao menos na natureza somos iguais. Na história da evolução, fósseis representativos demonstram que habilidades foram se acumulando ao longo dos tempos, caracterizando os humanos. Desde a caça, fabricação de instrumentos de pedra ou confecção de trajes em pele, passando pela destreza artística incrustada em pinturas rupestres de cavernas ancestrais, até a aquisição da capacidade de cultivar agricultura, considerado marco evolutivo associado ao aparecimento de civilizações, o bicho homem foi sendo forjado.

Uma linguagem própria, que se diferencia de outras formas de comunicação compartilhada por diversos animais, foi fundamental para agregar os primitivos. Não há consenso sobre o desenvolvimento da linguagem. Alguns pesquisadores defendem uma abordagem gradualista. Outros apontam evolução abrupta e postulam que a maneira como falamos hoje não teria despendido milhares de anos para ser alcançada, sendo uma combinação de elementos de comunicação preexistentes na natureza, como aqueles identificados entre macacos e pássaros, por exemplo. Fato é que, atualmente, usufruímos de linguagem riquíssima, que se dá em diferentes camadas, composta por estruturas complexas, múltiplas expressões e número infinito de palavras.

No entanto, sermos dotados de instrumental tão poderoso não tem sido garantia de diálogo. O valioso – e indispensável – legado da Biologia não contém o homem todo. É preciso a interação com outras disciplinas, inclusive as que historicamente, e cada vez mais, são marginalizadas, para compreender no que a humanidade vem se transformando. Temos nos entendido cada vez menos. Na contramão do que supúnhamos, com o passar dos anos, nos tornamos menos “humanos” nas acepções da complacência e benfazejo que podemos conferir ao termo. Falamos sem pensar e desaprendemos a escutar. Não sabemos falar o que pensamos sem ferir. Bichos raivosos, alguns de nós, listam regras supostamente ideais para o coletivo, mas que, contraditoriamente, excluem e desprezam o próximo. É que onde espuma o preconceito, resseca a bondade...

Há macroquestões nos campos da economia, história ou geopolítica, dentre outros, que explicam como chegamos a este ponto de distanciamento, irascibilidade e crueldade. Contudo, há algo no “universo particular” de cada um de nós que se apagou e deixamos de enxergar o irmão ao lado com a benevolência que gostaríamos de ser olhados. Estamos entrincheirados. Entre ideologias cambaleantes, verdades supostamente inequívocas e falta de empatia, um fosso se abriu. Divididos, muitos de nós seguimos mais cegos e atarantados que nunca. Insensíveis a argumentos razoáveis ou sentimentos explícitos. Vendo no outro, um inimigo que em nada se aproximaria de nós mesmos.

Comparada à idade do Universo, o tempo de nossa existência é pífio. Relativamente recente no planeta, a vida humana é veloz e curta. E para os de mente igualmente curta, é ainda mais diminuta. Os que alimentam preconceitos, segregam, insuflam animosidades e insistem em bradar regras que apequenam o semelhante, também se apequenam, pois desperdiçam o que há de mais sublime e específico em ser humano: a capacidade imaginativa. Ao se prenderem a ideias preconcebidas não reconhecem, tampouco criam, novas formas de estar no mundo. Apenas reproduzem com fidelidade canina o que acham que ouviram. E assim, como zumbis, seguem mais mortos que vivos.

Se por um lado a Biologia contribui para nos fazer ver a condição de igualdade entre todos, por outro, somos únicos. Não podemos perder de vista que é na diferença que podemos ser verdadeiramente autênticos. As desigualdades devem ser questionadas e combatidas. E para os que insistem em vendar os olhos, vale lembrar que as diferenças precisam ser compreendidas, incorporadas e respeitadas no convívio social. Aqueles que reconhecem em sua própria originalidade, fonte de riqueza a ser valorizada, serão livres. Sempre. O impalpável não pode ser aprisionado. É no intangível que está o melhor de nós e a essência do que é ser humano.

* Artista profissional, mestre em Teatro e doutora em Ciências