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Os super-heróis e a Disneyficação do imaginário

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A cultura de massa, já eivada de clichês, parece ter sofrido um ataque de kryptonita. Há uma grande massificação dos filmes cujo mercado orbita em torno dos super-heróis. De onde veio essa febre; para onde ela vai?

É preciso entender os estúdios Disney, que vêm adquirindo várias empresas do entretenimento nas últimas décadas: Pixar, Lucasfilm (responsável pela franquia “Star Wars”), Marvel Studios e, recentemente, a Fox. Isso torna a Disney dona de grande parte do imaginário norte-americano e, por extensão, do mundo, visto que seus filmes são largamente exportados. Um dos seus maiores mercados é a China, por exemplo. O que gerou tamanho sucesso?

Nos anos 80, a Disney experimentou fracassos de bilheterias. O roteirista Christopher Vogler, então, propôs um memorando que gerou o chamado paradigma Disney, embasado na teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo, de Jung, e no monomito, do mitólogo Joseph Campbell. Os roteiros deveriam seguir à risca uma jornada que envolve um nascimento complicado do herói, a descoberta de um mentor, uma missão que envolva seu oposto, ou seja, um antagonismo, uma recusa da missão, seu início, morte simbólica, renascimento, a derrota do antagonismo e casamento, terminando com uma passagem rumo a um nível superior àquele em que ele se encontrava inicialmente.

O paradigma Disney estipulou até os minutos dessas etapas no filme. O projeto funcionou: Vogler se tornou referência para roteiristas e transformou seu memorando em livro. Tudo isso já havia sido “testado” por um famoso colega de faculdade de Vogler, George Lucas, que, com base no monomito de Campbell, criara a saga “Star Wars”.

O sucesso da Disney se estendeu a séries de TV, brinquedos, games, livros, histórias em quadrinhos, todo tipo de merchandising – a culminar no ano que vem em uma plataforma de streaming apenas com seus produtos, rivalizando com a Netflix. Com a compra da Marvel e da Fox, os filmes “Vingadores”, “Homem de Ferro”, “Pantera Negra”, “X-Men”, “Deadpool” e, graças a um acordo com a Sony, “Homem-Aranha”, tornaram-se propriedade da Disney.

No Brasil, o que salva o combalido mercado editorial, além da emergência das microeditoras, são os livros infantojuvenis e as HQs. Sintomas semelhantes: desde a Segunda Guerra, em tempos de “crise”, chamam-se os super-heróis. Naquele caso, o Super-Homem e, aos poucos, toda a Liga da Justiça.

E qual o problema? Com essa disneyficação do imaginário, nunca tantos filmes estiveram à mercê do clichê, conduzindo a uma vida clichê. O imaginário está colonizado pelo monomito, produzindo dele inúmeras “novas” versões, tanto na ficção quanto na sua extensão mais dura, a vida cotidiana.

Vejamos o caso de Batman. Exemplo cristalino do monomito, sua origem segue cada uma das etapas, mas um super-herói deixa de completar a fase final do monomito para continuar as vendas, ou seja: nada de casamento. É cena corriqueira nas histórias de Batman, tanto nos quadrinhos, como nos filmes, ele torturar pequenos criminosos em busca de pistas sobre seus vilões-fetiche. Batman, bilionário, self-made man, faz justiça com as próprias mãos. A história mais popular de Batman, “O Cavaleiro das Trevas”, foi acusada por muitos por possuir tons fascistas. Se estou, de um lado, alertando para os aspectos conservadores do monomito, ressalto que personagens como os X-Men trazem, em seu norte, outra tendência.

O que fazer? Nem só de monomito vive a ficção. Existem casos em que ele é desestabilizado, esgarçado ao extremo. Para citar poucos exemplos: a literatura de Philip K. Dick, o cinema de Bergman, Lars Von Trier, os recentes “Thelma”, de Joachim Trier e “A Chegada”, de Denis Villeneuve; os melhores quadrinhos de Alan Moore, Grant Morrison, Alejandro Jodorowsky, Masamune Shirow e a ótima série de animação “Rick & Morty”.

Existem, ainda, obras que vão muito além do monomito, como a literatura de Kafka, seguida de Samuel Beckett, Jorge Luis Borges, Italo Calvino, Paul Auster etc. No Brasil, podemos citar João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Nuno Ramos etc. No cinema, uma grande referência é Andrei Tarkovski, assim como os filmes que flertam com o entretenimento de Philip Kaufman e, em quadrinhos, como o “Aqui” de Richard McGuire e “Desaplanar” de Nick Sousanis.

Pensar o monomito como eterno e imutável é um equívoco. As histórias se assemelham, mas suas diferenças no tempo nos dizem muito. Se escrevo este artigo, é, entre outras motivações, pela alegria que essas histórias me causaram e também, graças a essa diferenciação, ainda me causam. No entanto, convido ao cultivo de nossa criatividade para suscitar outras formas, éticas e originais, de narrativa e de vida. Isso permitiria resistir a uma imposição do clichê, subordinado, a grande maioria deles, a um estereótipo estrangeiro, que insiste em colonizar nosso imaginário.

* Psicólogo, pesquisador transdisciplinar, doutor pela UFRJ

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