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Tempos de resistência

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Resistência é a palavra do momento. E sem tem algo que a mulher sabe fazer é resistir. Que o diga a mulher Maria. Cearense, farmacêutica, vítima de constantes agressões por parte do marido. Maria resistiu. Primeiro, a um tiro de espingarda que a deixou paraplégica. Depois, à tentativa de eletrocutá-la.

Em todo o Brasil, as mulheres resistem a despeito dos números. Treze mulheres são assassinadas todos os dias no país. Mais da metade dos feminicídios ocorre dentro de casa. Fala-se muito da violência nas ruas. Para Maria, assim como para tantas mulheres brasileiras vítimas de violência doméstica, talvez a rua fosse o melhor refúgio.

Maria da Penha é mulher brava e resistente. Deu nome à Lei. Em 1994 lançou o livro “Sobrevivi... posso contar”, onde relata sua história e incentiva mulheres a lutar pelo direito de não morrer. Num depoimento ao Ministério Público do Paraná, disse: “Acordei com um barulho muito forte. Tentei me mexer e não consegui. Na hora pensei: ‘o Marco me matou’. Passados alguns minutos, fiquei escutando tudo o que se passava ao meu redor, mas não podia sair de onde estava e fiquei rezando e pedindo a Deus que me deixasse viva, que não deixasse minhas filhas órfãs de mãe”. E continuou: “Fiquei quatro meses hospitalizada – dois em Fortaleza e dois em Brasília. Ao voltar para casa, Marco me proibiu de avisar a minha família que estava chegando. Visitas eram só com autorização dele, que também proibiu minhas filhas de se aproximarem de mim por um tempo”.

A primeira tentativa de assassinato ocorreu em 1983. Até 2002, quando o caso foi solucionado, foram quase 20 anos até o Estado brasileiro ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por omissão e negligência. Resultado: o Brasil reformulou leis e políticas referentes à violência doméstica.

A vitória e reconhecimento estão impressos na mente daqueles que insistem em agredir em vez de dialogar: atualmente, só 2% dos brasileiros não ouviram falar da Lei Maria da Penha e, após sua criação, houve um considerável aumento no número de denúncias de violência familiar e doméstica. Basta discar 180.

Mas, se a primeira batalha foi vencida, a guerra pela paz mal começou. Especialmente entre as classes menos abastadas economicamente. O Atlas da Violência 2018 (Ipea/FBSB, 2018) mostra uma taxa de homicídios maior entre mulheres negras do que entre não negras – 5,3 em cada 100 mil habitantes, contra 3,1, uma diferença de 71%. Pior: em 10 anos de registro, a taxa de assassinatos de mulheres negras subiu 15,4%. Entre as mulheres não negras, houve queda de 8%.

Uma leitura mais detalhada do Atlas revela dados igualmente alarmantes. Quando o assunto é estupro, em mais de 50% dos casos as vítimas têm até 13 anos. Desses, 30% são perpetrados por familiares próximos como pais, irmãos e padrastos. O relatório também chama atenção para a proximidade dos agressores. Quase metade dos estupros contra vítimas adultas – 46,1% – foram praticados por pessoas conhecidas.

Maria resistiu. À violência, à denúncia. À negligência, um livro escrito. Uma lei que estampa seu nome. De onde viria tamanha obstinação? Talvez, como farmacêutica, a mãe de três filhas soube explorar como poucas o conhecimento adquirido para curar. Um exemplo para os dias atuais, em que a violência está banalizada. Travam-se batalhas onde todos perdem.

Aos brasileiros que se opõem à lógica perversa da violência, cabe resistir. Ao procurar a origem da palavra resistir, surgem três etimologias: manter-se firme é uma das origens. Padecer, sofrer também. Existir é a terceira etimologia. Maria existe. E dá o exemplo de vida tão importante em tempos de resistência.

* Jornalista

** Publicitário