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Das esquerdas brasileiras, qual viverá?

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Escrevo na manhã chuvosa de 14 de setembro ao som desagradável da Internacional Comunista, com a certeza de que o Hino Universal dos Trabalhadores não será o hit nas urnas de 28 de outubro. A audição popular é surda às esquerdas tradicionais.

Duas perderam audiência para o cântico de louvor do pastor-cabo Daciolo: Guilherme Boulos (PSOL) e Vera Lúcia (PSTU). Essas esquerdas discursam contra injustiças sociais, mas os injustiçados não formam maioria em Câmara de Vereadores. A resposta é simples: a imensa massa de injustiçados não escuta Boulos e muito menos PSTU.

A maioria não ouve PCO, PCB e PCdoB. No caso dos dois últimos partidos, a distância se agrava mais porque surgiram em 1922, ou seja, há quase cem anos poucos escutam a Internacional Comunista. É bem verdade que eleitores do Maranhão ouviram Flávio Dino (PCdoB); ele, porém, se elegeu pela segunda vez a governador não por causa de seus lindos “olhos vermelhos”, e sim por razão de duas representações simbólicas: Dino é católico e juiz federal – antes de ser comunista, o povo o vê como aquele que teme a Deus e trabalha em nome da Justiça e da Ordem.

Esse, um dos problemas das esquerdas ortodoxas: não há força simbólica. Se Lula obteve quase 53 milhões de votos em 2002, o motivo foi seu “capital simbólico”: o nordestino-pobre-operário acenou “Lulinha, paz e amor” em uma legenda que se dizia “o partido da ética”.

Lula, entretanto, condensou tanto capital simbólico que sua imagem esvaziou o PT de autocrítica. “Afinal, somos um partido político sob a liderança de pessoas de carne e osso ou somos uma seita guiada por uma pretensa divindade?”, pergunta Antonio Palocci Filho em sua carta à presidente do Diretório Nacional do PT, Gleisi Hoffmann.

À mercê de um tempo em que Lula falou como ser divino, as esquerdas brasileiras viveram de mito; e mito, sabemos, é fala roubada, adverte Roland Barthes. O mito roubou falas de reflexão, de autocrítica. O mito roubou falas entre esquerdas moderadas e centro. O mito roubou a fala de Fernando Haddad. O PT chega ao fim da campanha de 2018, então, sem resquício de representação simbólica, ficando isso bem evidente no WhatsApp, onde memes dessacralizaram a imagem do mito. “Nunca na história deste país” se riu tanto da esquerda pragmática. Nunca a falsearam tanto. Se ainda restava alguma “pretensa divindade”, os memes profanaram de vez a imagem de Lula.

O capital simbólico agora é messiânico: Jair Messias Bolsonaro, o capitão. Se militares e evangélicos são simbólicos, Jesus e seu Exército agora nos governam de Brasília. E aí eu pergunto às esquerdas ortodoxas e pragmáticas: de que forma igrejas serão combatidas? Sindicatos queimarão pneus em rodovias? Feministas entrarão nuas no culto de pastores ou urinarão no palco sagrado? Marxistas ateus rasgarão a Bíblia? Os mais pobres serão convocados a saquear o dízimo? Não havendo nada de simbólico nesse combate, esse tipo de esquerda, quanto mais bate na massa do pão sagrado, mais faz a massa crescer simbolicamente.

Nos anos 30, o Comitê Central do PCB estava convencido de que o país vivia uma crise pré-revolucionária. O secretário-geral, Antônio Maciel Bomfim, o Miranda, acreditava nisso, bastando apenas que o povo pegasse em armas. No jornal “A Classe Operária”, de 30 de setembro de 1935, Miranda descreveu o governo de Getúlio Vargas batendo em retirada, enquanto as Forças Armadas e a polícia se confraternizaram com os comunistas. Carlos Prestes, por sua vez, pediu ajuda a colegas tenentistas para ressuscitar a Coluna Prestes, mas o tenentista Miguel Costa disse ser absurdo transformar movimento de massa em movimento armado.

Outro crítico, Octávio Brandão falou não haver condição para uma ressurreição armada. Depois de Getúlio Vargas fechar a Aliança Libertadora Nacional, Brandão defendeu a ideia de a Aliança se reorganizar com outro nome, além de educar a classe operária ao longo de um tempo. Mas, para o PCB, bastava só dizer o nome de Carlos Prestes e milhões e milhões se levantariam contra o governo traidor de Vargas.

Hoje, não basta dizer Lula, pois milhões e milhões não se voltarão contra o governo de Jair Messias Bolsonaro. Não só isso: não é mais apropriado dizer “esquerda”. Como sugeriu em sua época Octávio Brandão, se faz necessário hoje reorganizar-se com outro nome.

Rede, PPS e PV já se encontraram para a criação de uma sigla. Só isso, entretanto, não basta, é preciso outra linguagem para estruturar relações criativas entre política e eleitores. Essas três siglas não ouvem a Internacional.

* Professor de Filosofia e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades