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Coluna da Segunda - "O horror!, O horror!"

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Em decisão liminar, o ministro Luís Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral, decidiu suspender a peça da propaganda da campanha de Fernando Haddad que exibe cenas de tortura e reproduz declarações de Jair Bolsonaro a favor do suplício de presos políticos e em defesa do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos comandantes do DOI-Codi de São Paulo. Em seu despacho, Salomão afirma que “a peça publicitária impugnada ultrapassou os limites da razoabilidade e infringiu a legislação eleitoral”. Sua excelência vai além e argumenta que as cenas têm o potencial de “criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. Além disso, alega que “o conteúdo da mídia, diante das cenas de violência, destina-se à faixa etária acima de 14 anos e só poderia ser veiculada, na televisão, após as 21 horas”.

As cenas que chocaram o ministro Salomão não têm nada de artificiais. Baseiam-se em fatos históricos de 1969 reconstituídos no filme “Batismo de Sangue”, baseado no livro de Frei Betto. Conta em detalhes o cerco da repressão aos jovens dominicanos que lutaram contra a ditadura e integravam a rede de apoio ao guerrilheiro Carlos Marighella. Comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, os agentes do DOI-Codi prenderam os freis Fernando, Ivo e Tito (e depois Betto). Fernando e Ivo foram barbaramente torturados, até que Fleury conseguiu que revelassem o telefone através do qual eram feitos os contatos. Eles serviram de isca para o encontro em que executaram Marighella. Além do espancamento, Fernando foi submetido a sessões de choque elétrico no pau de arara e na chamada “cadeira do dragão”, que ampliava o efeito das descargas. Tito também foi alvo do sadismo de Fleury e seus homens. Os horrores da tortura e a perversidade de Fleury deixaram frei Tito de tal forma amargurado que ele, banido do país, suicidou-se na França, em 1974.

Cenas fortes, sem dúvida, ministro Salomão. Mas fiéis aos crimes contra a humanidade que foram cometidos em quartéis e ‘casas da morte’. A peça da campanha do PT mostra o suplício dos freis dominicanos. A ‘cadeira do dragão’ foi um instrumento de tortura utilizado no DOI-Codi de São Paulo, situado à rua Tutoia. “O preso é sentado nu, com os punhos amarrados aos braços da cadeira, e tem suas pernas imobilizadas por uma trava em baixo dela. O método impedia o preso de se esquivar dos choques durante as descargas elétricas”. Um dos que não sobreviveu às torturas do DOI-Codi/SP foi o jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, preso em 1972. Eis o relato do carcereiro Oberdan, o ‘Zé Bonitinho’: “O Merlino, se fosse por mim, estaria vivo. Teve um problema de circulação no pau de arara, mandamos para o Hospital do Exército, telefonaram (dizendo) que para salvá-lo amputariam as duas pernas. Fizeram uma votação, eu perdi. Deixaram morrer, uma pena”.

Relatos fortes para crimes praticados à época da ditadura militar. No DOI-Codi/SP, após sessões no pau de arara e na ‘cadeira do dragão’, os prisioneiros encontravam-se tão debilitados que sequer conseguiam voltar para a cela. “Arrastavam-se pelo chão como animais feridos, degradados de sua condição de seres humanos”. Para manter a barbárie em funcionamento, várias equipes de torturadores se revezavam. As sessões podiam levar dias e o objetivo era não atenuar o sofrimento dos presos políticos. “Em cada equipe havia uma mistura de militares, policiais civis e integrantes do esquadrão da morte de São Paulo, liderados pelo delegado Fleury”. Está mais do que documentado que a Equipe A do DOI-Codi/SP era comandada pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, o ‘Dr.Tibiriça’ e pelo capitão João Luiz de Souza Fernandes, o “Dr. José”.

Esses são os fatos. No entanto, Jair Bolsonaro já afirmou, por várias vezes, sua admiração por Brilhante Ustra. Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, ele dedicou seu voto à memória do comandante da tortura em São Paulo. E nunca retirou o que disse. Bolsonaro está perto de ser eleito presidente do Brasil. E isso, sim, ultrapassa os limites da razoabilidade e pode criar estados mentais, emocionais ou passionais. Um homem que defende a tortura e torturadores pode mandar nos destinos do país. Só nos resta repetir as últimas palavras de Kurtz no livro ‘O Coração das Trevas’, de Joseph Conrad: “O horror!, O horror!”.

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coluna | jb | política