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Uma eleitora

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Véspera do primeiro turno, caminhando pelo calçadão, dou de cara com G sentada num banco, lendo postagens no zap. Mulata, favelada e deficiente física – perdeu uma perna em criança num acidente – abre um sorriso ao me ver. Nos conhecemos há anos e vez em quando eu a socorro com uns trocados e, principalmente, livros. Viciada em leitura, adora literatura policial

– E aí amor, vai votar em quem? – pergunta, na sua maneira expansiva de ser.

– Ciro. E você?

Adivinhem em que ela vai votar!

– Não acredito. E por que você vai votar nele?

– Porque ele vai matar os bandidos.

– Você acha que dá mesmo para matar todos os bandidos? E quais? Só os pés de chinelo ou isso inclui também os de colarinho branco?

Um pouco desconcertada, replica:

- Voto nele também porque odeio o PT. Odeio o comunismo. Odeio a Rússia. Odeio bandeiras vermelhas. Odeio a cor vermelha.

O rosto, usualmente bonachão e risonho, adquire uma expressão que desconhecia, intensa, contraída, de revolta e ódio.

- Mas a Rússia há muito abandonou o comunismo. Ou o que eles chamavam de comunismo.

– Mas foi comunista. Odeio essa gente.

Penso que, por mais pérfidos que possam ser os comunistas, dificilmente algum terá feito qualquer mal a G. É bem mais provável que banqueiros, do naipe de um Paulo Guedes, sejam muito mais responsáveis pela vida de agruras que ela, como todo pobre, leva. Penso em perguntar se ela sabe que seu candidato apoiou o congelamento dos gastos com saúde por 20 anos e vai tornar, se eleito, mais precário e infernal do que já é o atendimento dos hospitais públicos, dos quais ela é dependente. Se sabe que a violência policial, voltada principalmente contra os pobres, vai aumentar, coturnos na porta de barracos – e com a prévia permissão para puxar o gatilho. Se está inteirada de que os recursos do ensino público serão drenados para o ensino particular, para enriquecer ainda mais os barões do setor. Se está ciente de que o paladino da anticorrupção deforma de maneira desonesta o processo eleitoral com torrentes de notícias falsas, fabricadas com a ajuda de agentes ligados a governos estrangeiros. E que seu candidato, obscuro parlamentar do baixo clero, fez parte durante anos de um partido que tinha em seus quadros corruptos do quilate de Paulo Maluf; e em 30 anos de atividade legislativa nada fez pelo estado que representa, a não ser, como tanta gente, enriquecer na política.

Essas e muitas outras perguntas me vieram à ponta da língua. Não fiz nenhuma. Ao ver a expressão raivosa de G, compreendi que tentar argumentar é inútil. Seu espírito já foi abduzido por fake news de todo tipo, mesmo as mais absurdas, como uma que compara o relógio dos dois candidatos e informa que o do líder da direita custa 50 reais, o da esquerda 500 mil.

A paixão que a toma (e a faz odiar uma cor!) é imune à racionalidade, estrutura emocional que passa a ser constitutiva de seu Eu, de sua pessoa. Qualquer objeção só a levaria a fechar-se ainda mais, em oposição aos “outros”, aos “vermelhos”. Lavagem cerebral funciona. Só lento processo de esclarecimento pode dissolver esta armadura. Só quando a realidade cair com todo o peso sobre sua cabeça ela entenderá que votou contra seus reais interesses.

Sorri para G, desejei bom voto, segui meu caminho.

* Escritor