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A invenção da roda e a criação do CBPF

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No primeiro mandato do governo Fernando Henrique (1995-1998), uma comissão instituída pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), ao examinar propostas de desenvolvimento da ciência brasileira, usou esta expressão “a invenção da roda”. Tratava-se à época de reduzir os investimentos em ciência fundamental em prol de utilizar tecnologias importadas. Vários grupos importantes de atividades de vanguarda em diversas áreas das ciências estavam sendo então criados em nosso país em consequência dos investimentos que órgãos de fomento como CNPq, Capes e Finep haviam realizados em décadas anteriores.

Esse título, a invenção da roda, repetido à exaustão, menosprezava atividades inovadoras, criativas e independentes de cientistas brasileiros que buscavam modos alternativos de entender o comportamento da natureza. Ou seja, desqualificava a atividade científica no país afirmando, arrogantemente, que eles estariam procurando inventar algo que já era por demais conhecido. E, no entanto, é assim, com liberdade total, que se constrói um ambiente científico favorável para desenvolver a habilidade e imaginação.

Foi assim que na Europa se consolidou, nos últimos séculos, um padrão de excelência científica que permitiu a geração de tecnologias de ponta, com investimentos maciços em ciência fundamental.

Entendemos então a falácia do argumento de que não é preciso apoiar ciência fundamental, mas sim tecnologias de vanguarda aproveitando como imitadores os conhecimentos e investimentos que os países ricos, um consórcio arrogantemente chamado de primeiro mundo, haviam conseguido. Devemos reconhecer, no entanto, que não há ingenuidade ou desinformação nessa posição. Em verdade ela nada mais faz do que consolidar uma visão política de subserviência.

No fim da década de 1940, em oposição frontal a essa visão, um grupo de jovens cientistas tais como Jayme Tiomno, José Leite Lopes, Cesar Lattes, entre outros, apoiado por empreendedores que possuíam uma postura nacionalista relativamente ao desenvolvimento científico do país, conseguiu criar um instituto de pesquisas básicas, o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Essa geração de brilhantes físicos pôs o nome do Brasil no cenário internacional.

Somente para citar algumas conquistas importantes dos “pais” fundadores do CBPF podemos lembrar que Jayme Tiomno esteve na fronteira das pesquisas relacionadas à desintegração da matéria, o que foi reconhecido pela comunidade internacional ao nomearem “triângulo de Tiomno”.

Cesar Lattes, indicado para o Nobel várias vezes, esteve na origem e no desenvolvimento da técnica experimental que possibilitou a descoberta, juntamente com físicos europeus e um norte-americano, da partícula fundamental, o meson, que deu origem à moderna física das partículas elementares.

Leite Lopes examinou a possibilidade da troca de partículas pesadas, chamados bósons, em processos de desintegração.

Infelizmente não podemos deixar de comentar que hoje os investimentos em Ciência e Tecnologia no Brasil desceram a níveis alarmantes para um país que pretende ser soberano e utilizar de modo legítimo e responsável suas riquezas naturais.

Os países que se destacam nessa área destinam parte significativa de seus PIB em ciência básica. Reconheceram, ao longo de suas histórias, que estes investimentos retornarão sob diferentes formas associados às tecnologias de ponta. Para o Brasil poder competir com esses países em condições semelhantes, deveríamos investir fortemente em ciências básicas sob pena de continuar a reboque das descobertas tecnológicas produzidas naqueles países.

As proibições de países como os EUA e outros de repassarem conhecimento científico e tecnológico em áreas críticas (foguete e física nuclear, por exemplo) impõem que cada país desenvolva sua própria expertise.

O caso de Alcântara exibe claramente a necessidade de um maior apoio e interesse na importante missão de construir nossa independência de colocar satélites em órbita. O governo brasileiro se prepara para um acordo com os EUA, contendo risco para a soberania brasileira sobre parte de nosso território envolvendo Alcântara. Cooperação sim, mas independência de prioridades e gerenciamento por nossos técnicos e cientistas.

Entre inúmeros exemplos que mostram a conexão entre ciência fundamental e tecnologia de ponta podemos apontar o caso da medicina.

Com efeito, a partir de experimentos nos grandes aceleradores do Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), os cientistas desenvolveram expertise para produzir tecnologias avançadas no tratamento de câncer.

A ciência se alimenta de autocrítica. A expressão “inventar a roda”, em vez de ser identificada como ironia, deve ser entendida como liberdade de pensamento. Apoiar os cientistas brasileiros para desenvolver a pesquisa dos fundamentos científicos é condição indispensável para que não fiquemos subordinados a importar tecnologias. Ademais, é importante não perder de vista o significado maior da atividade científica. Desenvolver a ciência básica em nosso país não é somente condição de independência e soberania, mas mais ainda, conduz a realizar a audaciosa experiência humana de compreender racionalmente o universo.

* Professor emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas

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