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Nem eu nem você: nós!

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“Dois homens olham pela mesma janela. Um vê lama; o outro vê as estrelas”. Assim falou o escritor inglês Frederick Langbrige (1849-1922) e o significado dessa frase cai como luva no Brasil de hoje. Alguns têm olhado para outros brasileiros e veem estrelas mitológicas, ao passo que, por sua vez, ao serem também observados, são representados, por aqueles, apenas lama a ser pisoteada. Não que, necessariamente, em alguns casos, a visão não se aproxime um tanto da realidade, mas de modo algum podemos tomar essa concepção como a verdade absoluta da imagem visualizada e, mais ainda, de maneira alguma devemos deixar que apenas nossos olhos nos guiem pelos caminhos a serem trilhados. Afinal, há texturas, aromas e gostos, os mais variados, há análises a serem feitas, as mais complexas, mesmo se tratando da percepção subjetiva sobre terceiros, porque é com eles que convivemos em nossos espaços existenciais e é com eles que vamos ter que reconstruir esses mesmos espaços, tão maltratados como têm sido em nosso país.
Eu ou você? Embora, na prática, e, realmente, em algumas situações, esse dilema se apresente e seja pertinente, no dia a dia, tal situação deveria ser apenas teórica e retórica, se tanto. Entretanto...
Eu ou você: não há mais espaço para isso. Eu ou você, que está do outro lado, que não defende o bem, assim considerado por mim, você é o oposto de mim, do que penso, do que sinto e do que faço; do que sou, afinal de contas. Você se transformou no meu antípoda, logo, não o tolero. Não tolero, sequer, a sua existência, que tem de ser, simplesmente, varrida do mapa, fisicamente, inclusive. O mundo é apenas meu e não seu. Não tolero sua forma de ser, de sentir, de pensar, de agir, suas razões desarrazoadas, suas palavras, sua visão de mundo, sua estupidez e obtusidade. O direito e a razão são meus e ponto final. Sem discussão. Deixamos de ser co-habitantes do mesmo prédio/bairro/cidade/estado/nação e, pior, da mesma condição de existência humana digna de viver neste mundo. Acabou a conciliação; acabou o “nós”; só “eu” existe – eu e quem sente, pensa e age como eu, evidentemente. O outro só importa se for “eu”. O “eu” virou o parâmetro universal da razão suprema e absoluta. E como discutir com o absoluto, não é mesmo?
É este o mundo em que desejamos viver? Este é o nosso país? A nossa casa? Vivemos em sociedades humanas altamente competitivas e egoístas, quando não, autoritárias. Criamos sociedades narcisistas porque amamos Narciso e porque, ao contrário do que dizia Rousseau, o Homem não é bom por natureza, tendo a sociedade por seu corruptor. Se não é o contrário exato, ao menos pelo que vemos do mundo, acreditamos que a natureza humana é, no mínimo, dúbia; somos capazes de fazer coisas maravilhosas e, ao mesmo tempo, coisas horrorosas! Somos seres ambivalentes, em que o pertencimento a uma civilização só é possível na medida em que a construímos de modo minimamente equilibrado e isso pressupõe respeito às diferenças, solidariedade coletiva e generosidade pessoal.
Certamente é, não só por isso, mas também pela excessiva individualização da vida moderna e do egoísmo imperante, aqui brevemente analisado, que o Brasil registrou 11.433 mortes por suicídio em 2016, segundo dados recentemente divulgados pelo Ministério da Saúde.
O fenômeno da escalada do suicídio é mundial. Com relações de trabalho cada vez mais deterioradas, atravessadas por assédio e abuso, com a vida social impessoal e narcisista, poucos são os espaços de conforto e troca afetiva.
No mundo do “eu”, em que “você” é eliminado, não existe solidariedade e generosidade e sem elas, morre qualquer projeto de sociedade; sem elas, o que temos é a barbárie cruel, egoísta e insensível.
Como bem o definiu Langbrige, há quem, do mesmo ponto de observação, veja coisas opostas, de belas estrelas ao mais sujo lamaçal. Deve procurar, com carinho e determinação, observar o mundo e a vida com outros olhos e perceber que o escuro do céu não é lama, mas a passarela para o desfile das belas constelações, que existem no céu e no coração de todos nós. Um outro mundo é possível.

* Geógrafo e pós-doutor em Geografia Humana ([email protected])
** Psicóloga clínica e doutora em Psicologia ([email protected])