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Cemitério de Perus

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Não é nada semelhante a um cemitério de elefantes, aonde os da espécie vão para morrer. Perus soem morrer de véspera e, em tempos nem tão distantes, vida animal não era assunto de macho: essa viadagem toda se resolveria com uma cusparada para o lado ou um tiro na cara.
Índio, preto, mulher, veado, pouco importa, metia-se o trator. Com dois deles unidos por uma corrente descomunal, matando e desmatando, ao som de Dom e Ravel, erguia-se o milagre brasileiro.
Pois, JJ Abdalla era dono de uma fábrica de cimento, em Perus, periferia de São Paulo, e não me lembro de ninguém, além dele, que tenha sido preso por dano ao meio ambiente.
Certamente, se o cara entrava e saía, é porque não ficava, mas, em plena ditadura militar, só porque a fábrica de Perus jogava mais cimento no ar do que nos sacos, e já que cegos e asfixiados estávamos todos... Um governador chegara a anunciar: “Traga a sua poluição para cá”.
Os dias eram assim... e, se rapadura é dura, mas é doce, não necessariamente nessa ordem, havia que se demonstrar que na regência do arbítrio se vivia sob o império das leis e, como em “Casablanca”, chega a hora de prender the usual suspects, como, naquele filme, ordenava o cínico inspetor. Assim, virava e mexia, lá ia Abdalla para a cadeia.
Mas eis que me ressurge Perus, após quatro décadas, ao atender honroso convite da arquiteta e amiga Nadia Somekh, para ir a São Paulo, ao seminário “Gestão Inovadora de Bairros Históricos”.
Pois vos digo que todo bairro é histórico. Qualquer beco de qualquer cidade tem uma história para contar: a sua própria.
Tenho recolhido depoimentos de vivências antigas de pessoas próximas, para um livro que nunca escreverei, e é instigante perceber como o tropeçar em algo corriqueiro transmite uma dimensão da história urbana, que números e mapas nos sonegam: a irmã de Dorinha correu de uma vaca no bucólico Borel, João me fala dos passarinhos de Água Santa e D. Maria de Fátima nos serve o almoço que levava para o pai, em uma fábrica de Del Castilho. Juntem tudo isso e teremos o retrato falado do subúrbio carioca, esmaecido pela posterior desindustrialização e a favelização que a ela se seguiu. Os números aliás corroboram. Na área, que reúne uns três milhões de seres, a população favelada cresce mais do que a total. A diferença é o pessoal do asfalto, se mandando de lá. Quem pode, se muda para a Barra. Os demais: Santa Cruz via Campo Grande. É a Marcha para Oeste – versão “retração carioca”.
Voltando ao seminário, entre exitosas experiências de primeiro mundo, destaca-se um singelo trabalho: os moradores de Perus buscam transformar o que já lhes foi algoz – a tal cimenteira – em um espaço de referência cultural: capacitam agentes locais, promovem o acolhimento caseiro de visitantes e desenvolvem roteiros culturais que seguem diferentes temáticas: indígena – há uma aldeia guarani, por lá – ferroviária, metalúrgica e... o cemitério, que nos dá o título que, lá no alto do texto, já nos inquieta.
Tolstói terá dito que se cantares tua aldeia estarás cantando o mundo e assim descobre-se que parte da história recente do país está, literalmente, enterrada em Perus: os túmulos daquele cemitério não são dos suspeitos de sempre, que entram e saem do xadrez para dar satisfação à opinião pública. Foi gente que entrou e, pelo contrário, nunca mais saiu. Pior: saiu morto. Mortos pela ditadura. Os desaparecidos, os enterrados como indigentes.
Indigente. Índio, preto, mulher, veado... cova rasa, passa o trator.
Em Perus, um pouco de cada um de nós foi enterrado e esquecido, mas um grupo de moradores se dispõe a nos servir de guia e nos fazer lembrar que a história não é para ser repetida.
Nem como farsa.
Domingo, que já nascerá histórico, cante sua aldeia, cante o mundo.
Cante a vida.
Com perus e elefantes #Elenão.

* Arquiteto – Urbanista DSc