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O humor: remédio ou veneno da política?

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A ironia aliada à criatividade sempre se mostrou como uma marca registrada do brasileiro. Há algum tempo observamos uma crescente tendência de satirizar as questões do país. Sem sombra de dúvida, o humor é uma excelente saída para se falar de assuntos espinhosos e uma maneira bastante especial de questionar a sociedade vigente. Grandes verdades podem ser reveladas através de uma piada. O bobo da corte, por exemplo, conseguia expressar o que o povo jamais ousaria verbalizar. Entretanto, devemos investigar, mais a fundo, se fazer piadas sobre vários temas estaria ligado a uma criação que subverte a norma estabelecida, ou se estaria a serviço de outro propósito.
No Brasil, imediatamente após um acontecimento expressivo, como um crime, um acidente com alguma figura pública ou até mesmo uma desgraça oriunda do descaso das políticas públicas, as redes sociais são inundadas por piadas, memes elaborados, charges e inúmeros posts, causando risos em grande parte da população, que, por sua vez, os compartilha em profusão. Com certeza, esse traço fala muito de nossa criatividade e talvez da capacidade brasileira de manter um alto astral mesmo em tempos de vacas magras. De uma perspectiva psicanalítica, rir das próprias adversidades é uma forma de elaboração psíquica para lidar com o desconhecido, o medo, o horror. Porém, será que a transformação da desgraça em algo risível não tem se tornado mais um sintoma do que uma criação?
Um dos perigos hoje é a banalização daquilo que não é palatável. Acaba-se focando mais na piada do que na questão em si. O cômico toma lugar da problematização e o trágico vira secundário; sendo, em muitos casos, esquecido ou recalcado. Talvez essa nossa tendência de transformar o terrível em risível possa ser um indício de nossa economia psíquica; mas ela evidencia um traço menos apreciável da sociedade: a banalização passiva de questões sérias que necessitam, na verdade, de ação.
Uma sociedade que usa frequentemente (e às vezes somente) o humor em detrimento de uma reflexão operacional e efetiva pode fazer desse veículo de expressão um veneno. A ironia poderia ser uma saída para lidar com a crise, mas ela só funciona se for acompanhada por uma ação reflexiva, permitindo, assim, outros acessos ao simbólico além da piada. Como afirma o sociólogo Richard Sennett, na sociedade burguesa da Europa do século 19, a dignidade era um dos afetos primordiais; atualmente, parece que é a indignação que constitui um dos afetos mais acirrados. Ora, a psicanálise explica que, quando somos acometidos por uma situação traumática, a ideia difícil de ser digerida pode ser recalcada, mas os afetos que acompanham tais representações não. Desta forma, o uso do cômico faz escoar o afeto da indignação; mas faz isso varrendo seu conteúdo ideativo para o inconsciente, que passa a atuar de maneira latente ao invés de ser refletido. Como o afeto não pode ser recalcado, ele pode ser deslocado para outras ideias, desfazendo a associação entre o afeto e a ideia original.
Com tal transformação do trauma em riso, temos a falsa sensação de nos livrar de um mal-estar; contudo, deixamos de elaborar o que realmente nos afeta. No fim das contas, acumulamos indignações sem saber exatamente a qual conteúdo ideativo os afetos sentidos estão associados. Pensamos, erroneamente, que basta esvaziá-los fazendo escoar, agressivamente, em direção a outrem ou ao social. Há vários exemplos desse “deslocamento (ou escoamento) afetivo” em atividades do cotidiano, como por exemplo, nas escolas, no trânsito e nas redes sociais, onde a indignação dá lugar ao ódio e à violência verbal e física. Desta forma, a “válvula de escape” gera o perigo da “passagem ao ato”, em uma ação sem mediação discursiva que dispensa a racionalidade e a interpretação e desconta o afeto no ódio em um ato de pura destruição.
Portanto, mesmo sendo um amante do uso criativo do humor na política, pergunto-me a quem servirá tal economia psíquica, que tende a estimular a conversão do riso em ódio destrutivo e contagioso. Certamente, não servirá àqueles que querem ver a política e a coisa pública se refazerem após a crise. Se rir pode ser o melhor remédio, como diz o provérbio, lembremo-nos, contudo, do que canta Frejat: “Rir é bom, mas rir demais é desespero”.

* Psicanalista e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades