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Quando o capitalismo foi salvo de si mesmo

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O livro intitulado “Storia sociale del calcio in Italia”, dos eminentes historiadores e pesquisadores Antonio Papa e Guido Panico, da Universidade de Salerno, entrega mais do que parece indicar o título. Tendo como mote fazer uma descrição analítica da história social do futebol italiano desde o fim da segunda guerra mundial até o início dos anos 2000, os autores acabam por traçar um quadro bastante elucidativo das transformações econômicas, culturais e sociais da Itália, um dos países que mais se desenvolveram na segunda metade do século 20.
Em uma passagem bastante marcante, os autores comentam o efeito que a conquista do sábado sem trabalho, inicialmente por parte dos sindicatos mais fortes do norte do país, teria sobre a atividade econômica em geral. O benefício obtido pelos trabalhadores mais organizados logo seria estendido para todo o mercado de trabalho (obviamente, à exceção das atividades tipicamente turísticas ou do setor de alimentação e alojamento), de tal forma que o tempo livre advindo com o “fine settimana” (a palavra inglesa “weekend” entrou em uso corrente na língua italiana nesse momento – a partir do fim dos anos 1950) acabaria promovendo aumento da demanda por ingressos de jogos de futebol, mas também de todo um mais amplo conjunto de atividades culturais e esportivas. O cinema novo italiano se insere nesse contexto. A Itália, bastante pobre até o fim dos anos 1940, era um dos países onde a renda mais crescia.
Esse tema – o tempo livre nas sociedades e seu desfrute por parte cada vez maior da população – é pouco discutido por economistas e outros profissionais das ciências humanas. Também nesse sentido a obra dos referidos autores deixa um inteligente registro acerca das atividades econômicas que tomaram impulso e promoveram a acumulação capitalista e o emprego, favorecendo o ambiente de pleno trabalho e mercado de consumo de massas que caracterizou as economias da Europa Ocidental desde os anos 50 até meados dos anos 70.
Essas transformações ocorridas na Itália se inserem no contexto que o maior historiador do século 20, Eric Hobsbawm, chamou de “construção política” em sua magistral obra “Era dos Extremos – o breve século 20”, destacando ter sido esta uma era de exceção na história do capitalismo, pois naquela quadra histórica foi possível conciliar robusto crescimento econômico e melhoria da distribuição de renda, durante quase trinta anos, nos principais países da Europa Ocidental. A queda da desigualdade no período mencionado foi gerada não apenas pelo ambiente de pleno emprego, que favorecia, naturalmente, o poder de barganha dos trabalhadores de todos os setores de atividade, mas também pela ampliação dos salários mínimos regulados pelos respectivos Estados Nacionais, bem como pela execução de políticas tributárias e fiscais progressivas. Conjugadas, essas políticas reduziam em 40% a desigualdade entre os salários líquidos, após a incidência de impostos e transferências sociais, em relação à desigualdade registrada entre os salários brutos (gerados no mercado de trabalho).
As reminiscências do capitalismo desregulamentado (liberalismo radical) que havia caracterizado o entre-guerras, gerando a Grande Depressão e tencionando o ambiente geopolítico que desaguaria na tragédia da Segunda Guerra, explicam a alteração na correlação de forças políticas que permitiram implementar as experiências de Estado de Bem-Estar Social, com ganhos não apenas para os trabalhadores, mas também para o empresariado.
Parece irônico e é certamente provocativo afirmar que os Anos Dourados do capitalismo europeu, quando a política esteve acima da economia, representam o período de maior desenvolvimento econômico e de transformações sociais mais profícuas da história do capitalismo.
O posterior desmonte desse modelo de desenvolvimento é tema para outro artigo.

* Professor e pesquisador da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense