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A cidadania indignada

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Apenas começa o período eleitoral, e o brasileiro sente engulhos diante de propostas que espantam e angustiam. Eleitores declaram intenção de anular o voto ou dele abster-se, a revelar a indiferença, pior, a indignação de parcela substancial da sociedade. São as águas sujas da política bandida dos últimos anos a mostrar o meretrício onipresente na condução do país. Dessa hecatombe e de todas as consequências que dela advieram só os cínicos se recuperam. Só os sociopatas se reapresentam ao voto popular em busca de foro especial, não de mandato. E são tantos cínicos e tantos sociopatas que é mais do que compreensível: desta sordidez, todo cidadão de bem se quer isolar, como da peste, como da serpente, como da besta dos infernos.


O mal aduba a terra de veneno e ameaça os frutos do trabalho, humilha o chefe de família, apequena seu sustento e corrói sua dignidade. Uma ideologia econômica importada, do dia para a noite, destrói a demanda por trabalho, corta proteções sociais, elimina farmácias populares, dificulta o ingresso de filhos em creches. E nesta exata hora, bem falantes e engravatados políticos se apresentam levando a tiracolo sabujos mestres das economias dos mundos. Sabem calcular a trajetória dos astros e estrelas, contam histórias das mil e uma noites, quando os homens domavam camelos e mulheres. E as estórias que contam, infelizmente entristecem ainda mais. O país ficou pobre. Mais pobre que você, mas tão mais pobre que você, tão mais miserável que você, que lamentavelmente você vai ficar sem emprego, mais dois anos, talvez quatro, certamente não mais do que cinco.


Não explicam de forma adequada porque se atentou e se pretende continuar a atentar contra a letra e o espírito da Constituição, que faz do pleno emprego e da justiça social os princípios norteadores da economia brasileira. Arrogantes, não convencem quando se sobrepõem aos constituintes que procuraram fazer deste país uma nação de homens e mulheres confiantes num destino de progresso e paz para os que nela nasceram ou nela buscaram abrigo.


Hipnotizados por uma opção ideológica assentada no mais profundo desprezo pelos direitos humanos – que protegem o primado do trabalho justamente remunerado e a dignidade de uma vida compatível com o Estado Democrático de Direito –, profetas de um mundo modernamente escravocrata pretendem convencer a cidadania brasileira a ratificar uma política de violência, desespero e ódio entre irmãos.


Fazem propostas de sacrifícios adicionais para uma população exaurida e descrente de seus representantes. Não se trata nem de suspeita nem de partidarismo, trata-se exclusivamente do sentimento de traição que a cidadania não consegue cauterizar. Porque, na realidade, não há agremiação política no Brasil que possa considerar-se insuspeita de não ter, de uma forma ou de outra, rompido o véu da confiança entre representado e representante, durante os três últimos anos de nossa vida política.


Muito antes de nos sentirmos traídos em nossas aspirações legítimas de respeito e seriedade da coisa pública, nos angustiam, como pesadelo recorrente, as imagens do delírio psicodélico em que se transformou a Câmara dos Deputados no dia em que aceitou o início do processo de impedimento de uma presidente. Não se trata de discutir se acertada ou não a medida judicial. Trata-se do vergonhoso espetáculo de provinciana patriotada que correu mundo para espanto e desprezo dos que nos julgavam uma nação admirável e, até então, admirada.


Convencer a cidadania brasileira a votar em propostas que estão a minar países democráticos ameaçados por fórmulas vicárias de neofascismo, em resposta a um neoliberalismo apátrida, será tarefa inútil. O Brasil não é servil a hegemônicos. Consciente de que sua missão é unir-se para romper laços de tutelas políticas ou dependências econômicas, a cidadania indignada já sabe muito bem em que votar. O resto é o resto.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália (e-mail: [email protected])

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