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Preservar as reservas internacionais

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Todo escritor, mesmo de modestos artigos, deve fazer o possível e o impossível para evitar homenagens ao ilustre Conselheiro Acácio – aquele personagem do Eça de Queiroz que se dedicava a proclamar o óbvio ululante. Bem sei que a sombra do Conselheiro nos persegue, mas – convenhamos – quem quer ver um articulista desfilar trivialidades? Por isso temos que estar em permanente vigília contra tal influência. Tanto mais que o Conselheiro – fato pouco conhecido – era economista e, além do mais, autor de um tratado de economia política!

A exortação que serve de título a este artigo tem, reconheço, certo sabor acaciano. Parece realmente uma homenagem ao Conselheiro. Só que não. Na campanha eleitoral deste ano, alguns candidatos à Presidência da República têm cogitado utilizar parte das reservas internacionais.

O surgimento dessa discussão preocupa. As reservas internacionais são um dos principais trunfos de que dispõe o país. Foram elas que nos permitiram atravessar, sem crises cambiais, episódios de intensa turbulência. O Brasil demorou a tirar a lição da experiência internacional, mas a partir de 2006 o país acumulou reservas substanciais em moedas. Graças a elas, a aguda crise financeira nos EUA e na Europa em 2008-2009 teve efeitos relativamente modestos e de curta duração sobre a economia do país. Graças a ela, as turbulências de 2018 vêm sendo enfrentadas sem grandes estragos até agora – mesmo com trapalhadas ocasionais do presidente do Banco Central.

Ciro Gomes foi o primeiro, salvo engano, a levantar o tema. Em entrevista recente à “Carta Capital”, ele disse: “Temos reservas de US$ 370 bilhões. Desse montante só precisamos manter uns 200 bilhões, o suficiente para garantir um ano e meio de importação. O restante pode ser usado para abater a dívida interna”.

O candidato do PDT tem o mérito de ser o único que se arriscou a fazer diversas propostas específicas na área econômica. Muitas das ideias que apresentou – na área tributária, por exemplo – são inteligentes e foram até copiadas, mas a sua proposta para as reservas merece alguns reparos.

Não há como estimar, de forma convincente, que o “nível ótimo” das reservas seja de cerca de US$ 200 bilhões. É verdade que, como muita coisa em economia, a aplicação prática do conceito de “nível ótimo” é sempre nebulosa. Diferentes indicadores e métricas são utilizados para tentar estimar o montante apropriado de reservas, sem que se possa dizer que um ou outro seja preferível.

Já vai longe o tempo em que se podia calcular o nível ótimo com referência às importações, como faz Ciro. A relação reservas/importação era mais usada quando as transações internacionais eram dominadas pelo comércio exterior de bens e serviços. Há várias décadas o balanço de pagamentos de países como o Brasil – e até de países menos desenvolvidos – são dominados por fluxos financeiros e movimentos de capital.

Isso forçou a reavaliação do que constitui um nível de reservas apropriado e das métricas para tentar estimá-lo. Passou a ser necessário, por exemplo, considerar a composição da conta de capitais e o tamanho da dívida externa de curto prazo. A presença de investidores estrangeiros voláteis e capitais especulativos é um dos fatores que recomendam manter reservas elevadas.

A crescente integração da economia aos mercados financeiros internacionais é outro fator que requer manutenção de reservas altas. No Brasil, desde os anos 90, houve liberalização dos movimentos de capital e os residentes no país passaram a poder remeter recursos para o exterior com facilidade. Como a maior parte dos ativos financeiros domésticos apresenta alto grau de liquidez, há que levar em conta o risco de uma volumosa saída de capitais em momentos de turbulência. Nesse ambiente, reduzir as reservas para 200 bilhões seria muito arriscado.

Devagar com o andor, portanto. Para manter sua segurança externa e dissuadir ataques especulativos, o Brasil terá de continuar com reservas altas, em nível próximo ao observado nos anos recentes.

* Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICs em Xangai; e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

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