BRASIL
Exportadores de café mantinham trabalhadores escravizados sem água, sem salário e sem banheiro
Por JORNAL DO BRASIL com Diário do Centro do Mundo
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Publicado em 10/03/2023 às 06:42
Alterado em 10/03/2023 às 09:06
Vinicius Segalla - No último dia 8, o DCM revelou a existência de trabalho escravo nas Fazendas dos irmãos Cesar Viana Klem e Sérgio Viana Klem. Eles são donos de 11 propriedades rurais em Minas Gerais que produzem café do tipo premium para exportação e ostentam selos e certificados de responsabilidade ambiental e social nacionais e internacionais.
Cesar Viana Klem assim se identifica em suas redes sociais: “Terrivelmente cristão. De direita. Bolsonarista. Família. Pátria. Deus acima de tudo”.
Cristão ou não, patriota ou não, defensor da família ou não, fato é que o empresário e seus irmãos mantinham seus funcionários e compatriotas em condições subumanas de vida e de trabalho. De fato, conforme mostra o Relatório de Fiscalização 04/2022 do Ministério do Trabalho, ao qual o DCM teve acesso e que se verá a seguir, as condições degradantes e exploratórias a que eram submetidos os trabalhadores impressionaram até os auditores fiscais que debelaram a senzala dos Klem, que não forneciam sequer papel higiênico a seus escravos.
Logo que a equipe de resgate (chefiada pelo auditor Flávio Ferreira Pena) chegou à primeira fazenda, no município de Manhumirim (278 km de BH), encontrou no estabelecimento rural sete trabalhadores, todos oriundos da cidade Caetanos, na Bahia. A cena é retratada no relatório de fiscalização, os destaques foram inseridos pela reportagem do DCM:
Os trabalhadores residiam em alojamento precário na própria fazenda, com portas com rachaduras, sem estar totalmente forrado e janelas vulneráveis, instalações sanitárias em condições precárias, sem descarga, sem papel higiênico e material de enxugo,
A moradia estava completamente suja; não eram fornecidas roupas de cama, não havia local para a tomada das refeições; sem lavanderia para a higienização das roupas e objetos de uso pessoal.
As refeições preparadas pelos próprios trabalhadores eram realizadas no alojamento que não possuía condições adequadas de conservação, asseio, higiene e segurança.
Na medida em que a fiscalização avançava, o cenário grotesco se avolumava. A equipe de resgate compreendeu que não tinham sido disponibilizadas ferramentas de trabalho (lonas) para a colheita do café. Notou também que os trabalhadores não recebiam quaisquer equipamentos de proteção individual adequados aos riscos da atividade desenvolvida, tais como: botas, luvas, óculos de proteção e proteção para a cabeça. De fato, a maioria trabalhava descalça.
Mas o pior ainda estava por vir. Ao fiscalizarem a área de colheita, que é onde os trabalhadores atuavam das 6h da manhã às 17h30, diariamente, não havia fornecimento de água potável. O trabalhador que tratasse de levar sua água, e ela que durasse toda a jornada de 11h30 de trabalho, ou então que trabalhasse com sede. Segundo depoimento de um dos resgatados, a sede era companheira de trabalho de todos. Banheiros? Não existiam, como aponta o relatório dos auditores:
Nas frentes de trabalho (colheita do café), não foram disponibilizadas instalações sanitárias para uso dos trabalhadores. Em entrevista com os obreiros, verificou-se que as necessidades fisiológicas estavam sendo realizadas no mato ao relento, aviltando a dignidade dos mesmos, além de expor a saúde dos trabalhadores ao risco de contaminações, uma vez que não havia a devida assepsia após a realização das necessidades fisiológicas.
De volta às senzalas – mal chamadas de alojamentos pelos irmãos Klem – novas e graves constatações: não havia local para refeição nem para preparo de alimentos. As refeições eram realizadas no mato, ao relento, sem o mínimo de condições higiênicas. Informa o relatório da equipe de resgate:
Conforme a norma, os locais para refeição devem atender aos requisitos mínimos de boas condições de higiene e conforto, capacidade para atender aos trabalhadores. Água limpa para higienização, mesas com tampos lisos e laváveis, assentos em número suficiente, água potável, em condições higiênicas, e depósitos de lixo, com tampas.
Entretanto, essas condições não foram atendidas, deixando os trabalhadores em situação de exposição a riscos de contaminações dos alimentos, bem como adoecimento por infecções causadas por alimentos mal conservados expostos ao risco de contato com animais, tais como baratas, moscas, ratos etc.
Obviamente, os fiscais também não encontraram qualquer coisa que se assemelhasse aos materiais previstos em lei e necessários para a prestação dos primeiros socorros, muito menos um posto médico ou enfermaria. A localidade situava-se em área distante dos centros urbanos e das unidades de atendimento à saúde.
Em estabelecimentos rurais, tais itens se fazem extremamente relevantes, uma vez que diante de uma ocorrência de pequenos traumas físicos, a ajuda médica quase sempre está distante, por vezes havendo a impossibilidade de remoção imediata do acidentado até um local com atendimento médico. Assim, conforme o relatório:
É imperiosa não só a disponibilização dos materiais, como a existência de pessoa com conhecimentos mínimos em primeiros socorros, para que os possa utilizar devidamente. Desse modo, a disponibilização de materiais de primeiros socorros em tais estabelecimentos pode determinar, em situações de emergência, a vida ou a morte do empregado.
E, para realizar as jornadas diárias de 11h30 nessas condições, os auditores constataram que os trabalhadores sequer recebiam salários, mas apenas um cheque em uma região sem agências bancárias. A única coisa que eles podiam fazer com o cheque era trocá-lo por produtos em uma mercearia determinada pelos patrões, que praticava os preços que bem entendesse.
Toda a inspeção foi realizada na presença de Cesar Viana Klem. Diante da realidade de tal maneira horrenda e incontestável, não restou outra alternativa ao fazendeiro que não fosse obedecer ao mando das autoridades trabalhistas, finalmente assinando a carteira dos sete trabalhadores que primeiro foram localizados e imediatamente já providenciando também a rescisão dos contratos de trabalho (já que todos os funcionários seriam resgatados dali), com o devido pagamento de todas as verbas rescisórias previstas em lei.
Posteriormente, porém, o exportador bolsonarista veio a negar qualquer irregularidade, emitindo uma nota pública a respeito do caso, que em determinado trecho assim afirmava (os erros de português da versão orginal foram mantidos):
A equipe Fazendas Klem, vem por meio deste salientar que a empresa fornece EPI devido, treinamento, CTPS assinadas, paga todos os direitos pertinentes aos colaboradores, possui acompanhamento do técnico de segurança do trabalho, e dentro da própria empresa, há um posto de saúde, centro odontológico e uma igreja, cedidos para a comunidade.
A Fazendas Klem possui o comprometimento com os colaboradores e com o meio social e fomenta garantir os direitos de cada funcionários, elaborando assim um ambiente digno.
São apenas mentiras. Na verdade, a indignidade a que eram submetidos os trabalhadores resultou na emissão de 14 autos de infração contra os fazendeiros bolsonaristas, todos descritos em detalhes e provados pelos auditores, como se pode ver abaixo.
Maurício Krepsky, auditor-fiscal do Trabalho e chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo da pasta (DETRAE/MTE), informou ao DCM que o relatório produzido pelas autoridades será encaminhado ao Ministério Público Federal, que assim poderá processar os irmãos Klem pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal, de submeter alguém a trabalho escravo, com pena prevista de cinco a dez anos de prisão.