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Um país varrido pelo AI-5

O ato de exceção da ditadura iniciou um período sombrio no Brasil e deixou marcas cinquenta anos depois

Reprodução -
O presidente Arthur da Costa e Silva e mais 24 assessores que integravam o Conselho de Segurança Nacional, dos quais 15 eram militares, decretam o AI-5 no Palácio Laranjeiras, no Rio
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“Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras”.

A previsão do tempo publicada no JORNAL DO BRASIL no dia 14 de dezembro de 1968 tentava driblar a censura e dar a dimensão dos acontecimentos políticos na sua seção de meteorologia. Os fortes ventos que varreram o Brasil no dia anterior vinham com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o mais duro decreto instaurado pela ditadura militar, que àquela altura passava por uma intensa disputa interna.

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O presidente Arthur da Costa e Silva e mais 24 assessores que integravam o Conselho de Segurança Nacional, dos quais 15 eram militares, decretam o AI-5 no Palácio Laranjeiras, no Rio (Foto: Reprodução)

Editado pelo então presidente, o marechal Arthur da Costa e Silva, ele deu ao regime uma série de poderes para reprimir seus opositores: fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos eletivos, suspender por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, intervir em estados e municípios, decretar confisco de bens por enriquecimento ilícito e suspender o direito de habeas corpus para crimes políticos.

“Sei que Vossa Excelência repugna (...) enveredar para o caminho da ditadura pura e simples, mas parece que, claramente, é esta que está diante de nós (...) Mas às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”, disse o então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho a Costa e Silva, durante a reunião.

Os primeiros efeitos do AI-5 foram percebidos naquela mesma noite após o anúncio do ministro da Justiça, Gama e Silva. Foram presos diversos jornalistas e políticos que haviam manifestado sua oposição ao governo dentro ou fora do Congresso. Entre eles, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda, vários deputados da Arena e do MDB, e até mesmo ministros do STF. Os que não foram presos passaram para a clandestinidade ou buscaram asilo em embaixadas. Seriam os primeiros exilados do regime militar. “Se antes já existia [repressão], o AI-5 marca os anos mais violentos da ditadura, os chamados anos de chumbo”, conta o historiador e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF, Adriano de Freixo.

Muitos militares e civis diziam que o AI-5 veio porque a esquerda radicalizou. Mas as lutas armadas cresceriam apenas em 1969, depois do ato. “Na verdade, os radicais estavam insatisfeitos com o que entendiam ser a suposta fraqueza do regime desde 64. Eles achavam que a punição de comunistas, subversivos ou corruptos não fora completada, a ‘depuração’ não havia sido completa”, explicou o historiador Carlos Fico, completando: “Eles queriam mais: o AI-5 foi a vitória desse grupo”.

“Triste foi ver a sociedade não oferecendo resistência alguma. As esquerdas, que esperavam que isto acontecesse, ficaram sós. E sós acabariam sendo trucidadas. Prevaleceu o conservadorismo amplamente dominante na sociedade, que já estava entrando na onda de euforia do ‘milagre’, anos de ouro para muitos, de chumbo para os poucos que resistiram”, analisou o historiador e professor de História Contemporânea da UFF Daniel Aarão Reis.

O AI-5 – que foi seguido por mais 12 atos institucionais, 59 atos complementares e oito emendas constitucionais – duraria até 17 de outubro de 1978. O motivo para a decretação do ato, entretanto, não é simples como pareceu. Os discursos do deputado do MDB Márcio Moreira Alves (veja o JB de domingo) serviram de pretexto para a linha dura do regime, mas não era a causa do decreto. Nem mesmo a conjuntura que precedeu o ato – de manifestações estudantis e passeatas a denúncias por parte de líderes políticos e jornais que faziam oposição – poderia resolver o imbróglio que se estabeleceu entre os militares.

O professor aposentado de Filosofia da UFF e líder estudantil da época, Antonio Serra, lembra que o decreto foi uma crise interna do próprio regime. “De certa forma, ele revelou também uma dificuldade ou até incapacidade de se resolver conflitos no aspecto político principalmente tanto da parte da oposição quanto da parte do próprio governo”, disse.

Para alguns historiadores, como Daniel Aarão, o AI-5 foi um “golpe dentro do golpe”. “A Constituição de Castello Branco foi estraçalhada, embora permanecesse vigente formalmente”, explica. Adriano de Freixo discorda do termo. “Golpe dentro do golpe parece uma ruptura bruta, como algo que aconteceu dentro de um contexto em 68, contra a radicalização dos setores da esquerda que foram à luta armada. Foi mais do que isso. Foi a vitória de um projeto de reforma moral da nação, de resgatar valores tradicionais, a disseminação de que a nação estava corrompida. Esse projeto se torna vitorioso. E boa parte do que foi censurado eram questões morais”, disse.

Entre 1968 e 2018

Cinquenta anos depois, uma parcela da população ainda nega a existência da ditadura, assim como as torturas e assassinatos cometidos pelos feitores do regime. Outros chamam o período de “revolucionário”, dando um tom positivo ao movimento que deixa uma “herança maldita” ao povo brasileiro.

“Os governos civis pós-Constituição de 1988 foram sempre muito subservientes em relação aos militares. Não fizeram nada para reformar as instituições militares, nada para discutir com elas suas novas funções numa democracia. Como faziam desde 1964, eles continuaram, impávidos, chamando a ditadura de ‘revolução democrática’. As forças armadas, alijadas, ressentidas, ficaram na moita. Esperando sua hora. E recuperando prestígio, graças exatamente às lideranças civis que as convocavam para ‘garantir a lei e a ordem’. E estão de volta, pelo voto, tendo mudado muito pouco, infelizmente. Um atraso a mais com o qual será necessário lidar”, lamentou Aarão.

Para Adriano de Freixo, a grande questão que permanece é que parte da sociedade brasileira continua extremamente conservadora. “Como o anticomunismo e o antiesquerdismo ainda falam com muita força para vários segmentos? Mesmo no mundo que vivemos hoje, 27 anos após o fim da Guerra Fria e da União Soviética, onde as sociedades capitalistas são maioria, esse fantasma do comunismo ainda é utilizado para mobilizar pessoas. O resultado das últimas eleições mostra isso”, comentou.

Daniel Aarão pondera sobre as classificações extremas da política atual, mas diz que é verdade que a tentação autoritária é grande. “E pode se extremar, caso protestos apareçam e cresçam. É preciso organizar um movimento de resistência democrática. Sempre há brechas”, completou o historiador para quem a crise democrática no país “é braba” e não poderia ser diferente, já que a Constituição de 1988, segundo ele, é cheia de “pontas e facões autoritários”.

“Há uns anos atrás, políticos e intelectuais diziam que a democracia estava ‘consolidada’. O pior cego é o que não quer ver. A democracia no Brasil tem um estupro a cada 15 minutos e 65 mil pessoas assassinadas por ano. Mais mortos, por ano, do que todas as perdas do EUA no Vietnã em 13 anos de guerra. As desigualdades permanecem gritantes”, concluiu.---

Contra a censura

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Contra a censura (Foto: Arquivo/CPdoc/Jornal do Brasil)

Desde o início da ditadura, a censura já atuava nos meios de comunicação, mas, com a promulgação do AI-5, ela foi institucionalizada. Jornalistas foram presos e os principais veículos tiveram que conviver com censores dentro das redações. A previsão do tempo, obra do jornalista Alberto Dines como chefe do JB, foi um ato ousado contra a repressão. “Na Voz do Brasil, foi o Alberto Curi que leu o texto do AI. Concluiu-se que estávamos efetivamente numa ditadura. (...) Eu desci e avisei: ‘Gente nós vamos fazer uma edição rebelde’. Naquela hora estava chegando a turma de censores. Eles não sabiam que a prova de página poderia ser alterada lá embaixo na oficina, só descobriram isso 24 horas depois. Aparentemente, respeitava-se tudo. Mas não apenas a previsão do tempo – que fui eu que pedi: ‘vamos fazer uma previsão do tempo que seja uma mensagem’. Todo o jornal, até os classificados, tinha coisas que indicavam que o jornal estava sob o controle de alguém e não mais dos jornalistas”, comentou Dines. Aos 94 anos, o editorialista do JB na época, Wilson Figueiredo, chama a censura exercida nas redações de “um horror”. “Eles reliam todo o jornal e vetavam. Não podíamos escrever nada contra o regime, que seríamos presos na hora. O JB não fazia o que os outros faziam, de ir pela rotina. Ele precisava criar. Tinha que inventar uma maneira de fazer as coisas.

Arquivo/CPdoc/Jornal do Brasil - Contra a censura