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Caminhada em memória das vítimas da seca

Ato pelos mortos nos campos de concentração para retirantes reúne milhares no Ceará

Marcelo Auler -
Milhares de pessoas participaram da Caminhada das Almas da Barragem do Patu, ontem
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Senador Pompeu (CE) - O sol começava a aparecer às 04h30 da madrugada de ontem e populares da cidade de Senador Pompeu, no sertão semiárido cearense, já tomavam a praça da matriz para, pelo 36º ano seguido, partirem na Caminhada das Almas da Barragem do Patu. Um ato que relembra os milhares de flagelados que sucumbiram em campos de concentrações criados no estado, em 1932, durante a seca, como o JORNAL DO BRASIL mostrou na edição de ontem.

Milhares de pessoas, de todas as idades, entre as quais Sebastião, com “mais de 80 anos”, como ele mesmo balbuciou. Sebastião mal ouvia e pouco falava, mas fez questão de percorrer os cinco quilômetros entre a praça da Matriz e o cemitério simbólico erguido ao lado do açude do Patu, apenas para relembrar a tragédia ocorrida há 86 anos.

Macaque in the trees
Milhares de pessoas participaram da Caminhada das Almas da Barragem do Patu, ontem (Foto: Marcelo Auler)

À medida que os caminhantes deixavam as ruas asfaltadas e tomavam a estrada de barro, o grupo aumentava. Entre os participantes estavam, pelo terceiro ano consecutivo, o bispo da Diocese de Iguatu, dom Edson de Castro Homem, assim como diversos padres. Foram eles que, motivados pela religiosidade popular, superaram a omissão do poder público e criaram a cerimônia das Caminhada pelas Almas como forma de não deixar que as mortes de milhares de flagelados caíssem no esquecimento.

A cerimônia cada vez ganha mais corpo e já não permite a omissão total do Estado. Se nos dois anos anteriores dom Edson viu-se obrigado a celebrar a missa sobre a boleia de um caminhão, com sol a pino, ontem havia um palco muito bem estruturado, com potente sistema de som, providenciado pelo governo do Ceará. Também não faltou a presença do prefeito, Antônio Maurício Pinheiro Jucá (PDT).

A manifestação, porém, foi do povo e de sua religiosidade. Mesmo saindo de casa de madrugada, para evitar o sol forte da região, onde há sete anos não chove, não houve demonstração de cansaço, nem de desânimo. Exemplo é o próprio Sebastião, que apesar da idade foi e voltou a pé, mesmo com a disponibilidade de alguns ônibus e carros para caronas.

No percurso, a única parada foi nos caminhões providenciados pelos donos da água mineral Pantheon. Pessoalmente, e com a participação de filhos pequenos, eles distribuíram aos romeiros mais de cinco mil garrafas de água gelada, que vinham com invólucro registrando a “36ª Caminhada da Seca, em louvor às almas da barragem”. Como manda a tradição, dezenas destas garrafas foram depositadas no cemitério simbólico erguido onde se acredita estarem os corpos das vítimas do Campo de Concentração do Açude do Patu.

Deixaram a água – bem como um saco repleto de pães – para os que morreram de sede, de fome, subnutridos, com doenças, abandonados. A mesma crendice popular – responsável, enfim, por essa história não se perder com o tempo – faz com que populares utilizem a caminhada para o pagamento de promessas às almas. Inclusive jovens, como Antônio Pereira da Silva, 29 anos, que trabalha com costura, e sua companheira, Juliete Vitoriana Teixeira de Lima, de 21 anos. Com a filha Ana Vitória, de um ano e cinco meses, no colo, os dois percorreram descalços ruas de asfalto, de paralelepípedos ou mesmo de barro.

Macaque in the trees
Como é tradição, muitos deixaram garrafas dágua como oferenda aos mortos de sede na seca (Foto: Marcelo Auler)

Via-se ainda pessoas que têm dificuldades de locomoção chegarem na garupa de motos levando às costas sua muleta. Muitas eram as idosas, que também dispensaram caronas. Outra cena comum eram famílias inteiras, com o casal rodeado de filhos, participando ativamente da romaria e da celebração.

Em sua homilia, dom Edson lembrou as mortes ali ocorridas – “aqui morreram pessoas de fome e pessoas de sede. Nós não podemos nem imaginar o que seja isso, mas nós imaginamos, porque sabemos por experiência própria o que é ficar sem água algum tempo, e ficar sem comida algum tempo”.

O bispo lembrou-se dos retirantes e migrantes de hoje, barrados em diversos territórios. Tendo uma mala de viagem como símbolo dos que são forçados a deixarem suas casas, defendeu a solidariedade e a hospitalidade.

O padre Anastácio Ferreira de Oliveira, pároco de Iguatu, fez a ligação do passado com o presente, lembrando de “quantos retirantes existem no mundo, seja aqui no Nordeste, seja na África, Ásia, pessoas que estão na fronteira da fome, da vida e da morte, vítimas de todo tipo de violência”.

Na sequência, o padre reafirmou a necessidade de a população manter os relatos que não se encontram em livros de estudo, como ocorreu no município: “Esta história dos campos de concentração eu não estudei na minha época de escola, porque foi escondida dos livros de história do Brasil, dos livros de história do Ceará. Hoje, um ou outro livro traz, mas cada um de nós aqui carrega essa memória. Não podemos deixar de repetir isso. Pessoas trabalharem por um pouco de água. Isso é uma imoralidade que não pode acontecer em nosso país”.

Marcelo Auler - Como é tradição, muitos deixaram garrafas dágua como oferenda aos mortos de sede na seca