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O mal-estar na civilização brasileira

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A perseverança da crise nacional e a inexistência de um horizonte de saída da recessão e de retomada das contratações para superar o desemprego produzem um estado de mal-estar, que, pelas evidências disponíveis, é muito acentuado. O governo surgido da resposta conservadora à crise não avança em sua superação, pelo contrário, o próprio presidente acaba de contribuir para o agravamento do quadro ao se envolver em um escândalo cujo roteiro passa por tenebrosas transações, entre elas, aparentemente, a advocacia administrativa. A articulação parlamentar para anistiar o caixa 2 também só jogou lenha na fogueira do desencanto geral. O que virá na delação da Odebrecht? Já está em movimento a contradição entre, por um lado, o que a investidura de Temer prometeu e o que esperam os que a apoiaram ativa ou passivamente e, por outro, o que vem sendo entregue e efetivamente poderá vir a sê-lo em matéria de economia, direitos, serviços, ética pública e democracia. A insatisfação nacional e outros comportamentos emergentes são uma expressão importante dessa contradição.

O capitalismo é inseparável das crises, que, sobretudo nas democracias, exacerbam as lutas políticas pela busca de alternativas para os impasses sistêmicos. O mundo ainda não se recuperou dos desdobramentos da crise de 2008. No caldeirão da crise, emergem novas lideranças e práticas, ideologias tentam se renovar, os regimes podem mudar, alguns partidos faturam, outros naufragam, formulam-se propostas alternativas de políticas públicas e assim por diante. Bismarck destacou-se na Longa Depressão, Hitler, Roosevelt e Vargas, na Grande Depressão, Reagan e Thatcher, na crise dos anos 1970. Ideias como protecionismo, livre mercado, estimulação da demanda, planejamento econômico, nacionalização, políticas sociais etc surgiram ou foram colocadas em prática em contextos críticos. O Brexit e a vitória de Donald Trump sintetizam características estruturais da crise internacional em curso e especificidades nacionais.

No Brasil, de 2013 a 2016 a conjuntura tem sido rica na produção de novos eventos, atores, propostas e ações, muitos deles preocupantes.  Diante dessa ebulição histórica, até aqui hegemonizada pelo liberal-conservadorismo, quanto tempo a sociedade brasileira conviverá com o atual mal-estar? Para vários grupos organizados, discordantes do motivo formal usado para a aprovação do impeachment, a queixa, como se não bastasse, não é só econômica, mas também política, de insatisfação com os rumos institucionais do Estado Democrático de Direito. Para as massas do eleitorado, a desaprovação do desempenho do sistema político também é pública e notória. Segundo pesquisa do Instituto Ipsos, publicada em agosto, 87% dos brasileiros estavam pessimistas em relação ao país. Havia, então, um pequeno consolo, pois, em comparação com março do corrente ano, o pessimismo havia caído sete pontos percentuais. De qualquer forma, a desesperança, três meses atrás, era avassaladora, e não parece ter havido mudança até esse mês de novembro. 

Recentemente, mesmo economistas que defendem a política de austeridade têm reconhecido que, apesar da suposta maior confiança propiciada aos agentes econômicos pelo novo governo, só ela não basta para a retomada dos investimentos, sobretudo devido à volumosa dívida das empresas e das famílias. Até no meio ideológico conservador, há uma percepção de que a crise fiscal prossegue e que a agenda restritivo-fiscalista não é suficiente. Ou seja, a reforma fiscal, a PEC 55, que era vista como uma das principais ações para a salvação da lavoura, parece agora não ter, por si só, tanto impacto na mudança das expectativas. Exige-se mais e mais reformas orientadas para o mercado, como a aceleração da já prometida reforma da Previdência, a reforma trabalhista, a desburocratização, a reforma tributária, o aprofundamento da abertura comercial e por aí vai. Na perspectiva das oligarquias da riqueza e da renda e de seus atuais representantes políticos, o mundo das reformas neoliberais parece ser a oferta do eterno purgatório para os não privilegiados, em troca da promessa inalcançável do paraíso terrestre dos livres mercados. Enquanto isso, prosseguem injustiças, como a da estrutura tributária regressiva e os salários de marajás no Judiciário, nos Promotores Federais etc. Até quando uma ordem social de desinvestimento na cidadania se sustentará?

Em setembro, houve um otimismo pontual e específico ao Rio de Janeiro, devido às Olimpíadas, grande evento internacional no qual o Brasil se desempenhou bem, muito, inclusive, em função dos investimentos que haviam sido feitos pelos governos federais anteriores e pela prefeitura do Rio de Janeiro. Note-se que, nesse grande evento, o presidente Temer foi vaiado. Mas a 50 dias das Olimpíadas o Estado do Rio de Janeiro decretou calamidade pública, condição que alcançou o fundo do poço recentemente. Quase todos os estados estão com problemas fiscais, uns mais outros menos graves.

No final do nono mês, pesquisa do Datafolha em várias capitais mostrava a insatisfação com os serviços públicos, tema que emergiu na conjuntura aberta em 2013. Saúde e segurança destacaram-se como os dois serviços mais demandados e que menos atendem às expectativas. Na mesma ocasião, veio a onda de ocupações de escolas contra a reforma do ensino médio e a PEC 55, que terá grande impacto negativo, nos próximos 20 anos, nas verbas da educação e saúde e nos investimentos públicos. Segundo um estudo da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, a previsão de perda anual para a área da educação será de R$ 24 bilhões. O MEC contestou, mas o cenário para as políticas de bem-estar está longe de ser promissor. 

Por que o pessimismo? Resposta: a política de extrema austeridade fiscal em curso não tem nada a ver com uma mera reforma fiscal, e sim com a perspectiva ideológica do Estado mínimo, que orienta as políticas neoliberais. Essa ideologia valoriza o livre mercado, a livre empresa, o individualismo, o esforço pessoal de cada um para garantir suas necessidades. O Estado é considerado ineficiente, perdulário, berço do paternalismo e do populismo com o orçamento público, meio de promoção de favoritismos a grupos de interesse. Por tudo isso, ele precisa ser reduzido e dar lugar à suposta racionalidade dos proprietários e investidores, auto-regulada apenas pela lei da oferta e da procura, que operaria como uma mão invisível socialmente benéfica para todos. Há, então, uma contradição entre o minimalismo estatal do Novo Regime Fiscal e as demandas do eleitorado por mais e melhores serviços públicos. O Estado mínimo está na contramão da opinião pública, que não quer pagar pelos serviços, além do que nem tem condições de fazê-lo. Na verdade, devido à crise, o caminho está sendo o inverso, contingentes da população que, entre 2004 e 2014, adquiriram serviços privados estão retornando ao Estado.

Em outubro, a vitória do conservadorismo-liberal nas eleições municipais, tendo à frente o PSDB, vencedor em sete capitais, entre elas São Paulo, deu-se em meio a um claro recado do eleitorado: a insatisfação com o sistema representativo, expressa na imensa quantidade de votos inválidos e abstenções. Não só os grupos sociais progressistas e organizados, os mais à esquerda, por exemplo, estão insatisfeitos, mas também o cidadão comum. Os movimentos sociais novamente foram às ruas no domingo, em São Paulo para protestar contra o desmonte da rede de proteção social, ameaçada pela PEC 55. A bancada de esquerda no Senado está propondo que o Congresso Nacional convoque um referendo para o eleitorado dizer se realmente quer que o Novo Regime Fiscal vigore.

Em síntese, tem-se o seguinte quadro. O estado de bem-estar da Constituição Cidadã, sequer devidamente implementado, já está regredindo para um estado de mal-estar. O Estado de Direito anda para trás, ganha contornos e conteúdos de Estado Oligárquico. A agenda da anticorrupção, que foi às ruas defender o impeachment, já viu, no Executivo, 6 ministros caírem em função de graves irregularidades. A mais recente, inclusive, que resultou na renúncia de Geddel Vieira Lima, envolve também o presidente Temer e o chefe da Casa Civil; por outro lado, no Legislativo, setores da base governista tentam anistiar o caixa 2. A economia de pleno emprego, existente até dezembro de 2014, tornou-se hoje o berço, ou melhor, a sarjeta do desemprego de 12 milhões de brasileiros.

O título desse artigo inspira-se em uma obra de Freud que aborda o conflito entre os instintos individuais e a civilização, especialmente entre, por um lado, os impulsos de vida e morte, amor e ódio, sociabilidade e destruição e, por outro, a lei, a proibição, a comunidade regrada. Quais são os estímulos que a civilização-Estado no Brasil está dando para que os indivíduos abram mão de sua agressividade destrutiva? A onda de ódio foi um dos componentes do próprio movimento que conduziu ao impeachment. Não à toa, há vários elementos de estado de exceção nas práticas institucionais em curso. Se quem deveria representar a civilização não consegue fazê-lo avançando na qualificação da vigência dos princípios institucionais, e, ainda por cima, alimenta a barbárie na base da pirâmide com suas políticas ultra-individualistas, onde iremos parar? O tecido social inteiro está permeado de descrença e violência instintiva. Recentemente, um pai matou o próprio filho, em Goiânia, pelo motivo da vítima participar em ocupações na UFG e um grupelho de extrema-direita invadiu o Congresso Nacional para exigir seu fechamento e uma intervenção militar. Sinal dos tempos, o pai, a suposta lei, vira austeridade bruta brotada da ideologia, pura destruição; cidadãos se valem da democracia para demandar sua extinção. Crescem os sinais de estado de natureza e de autoritarismo liberal na sociedade brasileira. 

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.