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O que fazer? Gestão pública participativa

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As manifestações de junho colocaram nas ruas quase dois milhões de pessoas. Expressaram a emergência de uma renovada democracia de massas, alimentada pelas transformações econômicas, sociais, políticas, culturais e ideológicas em curso no país. Seu caráter pluralista abrangeu diferentes e nuançadas motivações de participação nas decisões públicas democráticas e uma variedade de demandas de conteúdo (transporte, saúde, educação, gênero, raça etc). Dois elementos comuns sobressaíram: a crítica aos  limites dos resultados da ação governamental em geral, estruturada a partir da representação democrática, e a vontade de participar mais nas decisões políticas municipais, estaduais e nacionais, e não apenas de votar nas eleições. 

Diante disso, o que fazer?

Se os limites do processo decisório da democracia representativa brasileira estão postos em xeque e se o que se quer é mais participação, então a discussão a se fazer é se convém haver um investimento político das lideranças políticas e da sociedade nas instituições democráticas diretas e participativas, que podem se combinar com a representação e complementá-la. A democracia direta, segundo a Constituição de 1988, contém três mecanismos: o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular. No Brasil, não há o mecanismo de revogação dos mandatos dos representantes eleitos. A democracia participativa diz respeito às instituições nas quais um determinado curso decisório de políticas públicas envolve conselhos, deliberativos ou consultivos, nos quais a sociedade civil participa, através de representantes eleitos, compartilhando, assim, as decisões com a burocracia pública. A mobilização das organizações da sociedade civil no processo da Assembleia Constituinte, em 1987-88, foi o que garantiu a aprovação dos mecanismos de democracia direta e participativa na Carta Magna. A redemocratização, construída no anseio de extinguir o autoritarismo em crise, ensejou um salto de qualidade na disposição participativa da sociedade civil.

Note-se que, já nos anos 1970, debatia-se a crise da democracia representativa nos países desenvolvidos, na Europa e América do Norte, expressa na queda da confiança dos cidadãos nas instituições eleitorais e partidárias, no absenteísmo, na não filiação a partidos políticos e na insatisfação com a ação governamental em geral. Essa discussão ainda é atual, pois a desconfiança no regime democrático perdura. A crise internacional de 2008 só agravou o problema, uma vez que, cada vez mais, se percebe que quem efetivamente governa são os agentes dos mercados financeiros. Se um dos principais pilares do Estado e da ordem política é a legitimidade, a crise de confiança na democracia representativa é uma crise de legitimação.

Mas a crise também tem ensejado a emergência de ideias, práticas e instituições alternativas, como, entre outros, os “partidos piratas” na Suécia, Alemanha, Áustria, Suíça etc e a discussão sobre democracia participativa e deliberativa, realizada até mesmo em instâncias da União Europeia. A democracia está historicamente convocada à reinvenção diante da crise de legitimidade que atingiu sua forma representativa, daí a importância de se investir em outros mecanismos de participação, além do comparecimento às urnas de votação.

O Brasil é considerado um laboratório da invenção democrática no campo da democracia participativa. No final do século XX, o invencionismo brasileiro localizava-se nos municípios, com destaque para o orçamento participativo, que, até 2004, havia sido experimentado em 194 cidades, tendo tido especial êxito em Porto Alegre e Belo Horizonte, nos anos 1990. Com a posse de Lula, em 2003, ou seja, no início do século XXI, a democracia participativa chegou à esfera da União. Até 2012, 86 conferências nacionais de políticas públicas e de direitos foram realizadas, ensejando a criação de muitos novos conselhos nacionais, além dos que já existiam há mais tempo, como o de saúde. Essa experiência mostrou que a participação pode propiciar ganhos de legitimidade ao sistema político e melhorar a qualidade das políticas públicas, como ocorreu em experiências nas áreas de saúde, assistência social e execução orçamentária. Mas, no campo do desenvolvimento, cujas políticas envolvem também os agentes econômicos, capital e trabalho, experiências participativas têm sido relevantes, no Brasil e mundo afora. Aqui, pode-se citar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado por Lula em 2003, fórum que fabricou ideias-chave, entre outras as que se desdobraram no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no Minha Casa Minha Vida, no Programa Universidade para Todos (Prouni), no Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (Pronat).

É muito importante que as eleições de 2014 debatam sobre a invenção democrática, que diz respeito à gestão pública participativa. O anseio por mais participação é real. É também verdade que a disposição para participar varia em intensidade e conteúdo, conforme os sujeitos. Se, por exemplo, ativistas dos movimentos sociais têm uma expectativa avançada de participação, cidadãos aposentados podem demandar formas participativas mais apropriadas às suas condições de existência e de motivação política. Por isso, formas de democracia direta e participativa, que combinem com a democracia representativa e fortaleçam-na, podem e devem ser articuladas em um sistema de gestão pública participativa. É importante entender democracia como cultura democrática, e não meramente como regime democrático. Uma cultura democrática construída com base na ação facultada e concreta dos cidadãos na práxis política da república, e não meramente através do voto obrigatório nas eleições, pode fazer frente à crise de legitimidade, que também atinge parlamentos e partidos no Brasil, como vimos em junho de 2013.

Pode ter chegado a hora de se avançar na construção institucional da participação democrática nos governos estaduais. No pioneiro Rio Grande do Sul, há o “Sistema Estadual de Participação Popular e Cidadã”, pelo qual mais de um milhão de cidadãos têm participado, por consulta popular, na formulação de políticas e em decisões orçamentárias posteriormente sancionadas pelo Legislativo Estadual. Na Bahia, o governo de Jaques Wagner instituiu o Plano Plurianual Participativo, envolvendo cidadãos de várias regiões do estado.

Como resido no estado do Rio de Janeiro, farei um breve comentário sobre a participação nessa unidade da federação. Há aqui os conselhos estaduais de saúde, educação, direitos da mulher, defesa da criança e do adolescente, juventude, direitos da pessoa idosa, tecnologia da informação, os conselhos comunitários de segurança, o conselho penitenciário, o conselho deliberativo da região metropolitana do Rio de Janeiro, enfim, diversos conselhos participativos. A Constituição estadual, seguindo a federal, também prevê a manifestação da soberania popular através do plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa. No entanto, não há efetivamente uma gestão pública participativa no estado, uma concepção de que a porta de saída virtuosa da crise de legitimidade é a porta de entrada no universo institucional do controle social do Estado, pelo qual a cidadania poderá não ser meramente um público espectador, distante e passivo, mas público soberano e ativo no funcionamento da polis, da coisa pública, da república.

Trata-se, então, de implantar, no Rio de Janeiro e onde mais for possível, um efetivo sistema estadual de gestão pública participativa, que combine diversos mecanismos de participação, deliberação e consulta popular, para que cada cidadão, conforme sua disposição ou capacidade de contribuição para as decisões cotidianas da república, tenha o direito político de ser co-governante do bem comum. Quem sabe, assim, superaremos a crise de legitimidade e ficaremos mais satisfeitos com os poderes públicos!

*Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política daUniversidade Federal Fluminense (UFF)e pesquisador das relações entre Política e Economia.