Oito dias depois do suposto ataque químico na cidade de Douma, as investigações da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) se tornaram o principal alvo da guerra de versões entre os países da coalizão internacional que atacou a Síria na última sexta-feira e a Rússia, que prometeu responder a uma nova onda de sanções patrocinada pelos Estados Unidos contra Moscou. Longe do atrito diplomático entre o Kremlin e as potências ocidentais, milhares de sírios se reuniram ontem na Praça Omeyas, na capital Damasco, para celebrar as últimas vitórias do regime de Bashar al-Assad.
No último sábado, o regime sírio reconquistou Douma, retomando o controle de toda a região de Ghuta Oriental. A delegação do Reino Unido na OPAQ acusa a Rússia e a Síria de impedirem o acesso dos investigadores à cidade. Kenneth Ward, representante dos EUA na entidade, alertou para o risco de manipulação de evidências pelos russos.
O ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, garantiu que o país não interferiu no local onde teria ocorrido o ataque. O chanceler afirmou que os países da coalizão se basearam em relatos imprecisos nas redes sociais e na imprensa para acusar a Rússia.
Os investigadores da OPAQ se preparavam para iniciar as investigações na Síria quando a coalizão internacional deflagrou o ataque na noite de sexta-feira. Desde então, as equipes buscam viabilizar o acesso a Douma, nos arredores de Damasco. A embaixada da Rússia atribuiu a demora na liberação dos agentes a “problemas de segurança” na região, mas afirmou que a entrada deles será autorizada na quarta-feira.
A escalada na tensão diplomática deve evoluir para uma nova onda de sanções. Após a embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, adiantar que o país aplicaria restrições econômicas a empresas russas que colaborariam com o financiamento de armas químicas para a Síria, o Kremlin prometeu retaliações rápidas. O parlamento russo estuda a criação de leis que restringiriam as importações dos EUA.
*Estagiário sob supervisão de Denis Kuck
A escalada na crise da Síria
Diretamente do Reino Unido, o professor de relações internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Renatho Costa, concede entrevista ao JORNAL DO BRASIL acerca dos últimos eventos na Síria.
Faz sentido que Assad tenha usado armas químicas depois de reconquistar 90% do território sírio?
Não faz nenhum sentido. O que a gente tem visto na Síria é que o Assad, com o apoio dos russos, conseguiu gradualmente reconquistar a soberania do território. Isso cria instabilidade sob a perspectiva dos EUA e fortalece o Irã e o Hezbollah. Ao mesmo tempo, os EUA e seus aliados, preocupados com a recuperação do poder e a possível alteração da geopolítica local, precisaram criar um factoide para viabilizar um ataque. A bem da verdade, tenta-se justificar uma intenção muito mais ampla, que é enfraquecer Assad e afetar a Rússia. Essa guerra atraiu atores externos que tentam lutar com interesses próprios, e não os da população síria.
Assad sai enfraquecido do ataque?
Eu tenho muita dúvida se o Assad vai cair. A legitimidade dele no poder é incontestável. A maioria dos rebeldes que lutam contra o regime são mercenários contratados por Arábia Saudita, EUA, Israel, alguns desde o início da Primavera Árabe. Muitos deles são jihadistas, mas não sírios. A grande maioria é de origem árabe, mas de alguns países da África e do Iêmen. Quando usamos a terminologia rebelde, passamos a ideia de que são sírios que lutam contra o governo. Se a Rússia não abriu mão do Assad quando Obama era presidente, agora não o fará. Em um processo de barganha, o que a Rússia poderia ganhar perdendo a Síria, aliada de importância ímpar? Mas não acho que a coalizão parará por aí. Estamos com todas as peças no tabuleiro. Se o Assad não reagir, corre o risco de sofrer um ataque muito violento. A Síria não pode se transformar em um Iraque, o que quase aconteceu no passado. A diferença entre os dois casos é que, no Iraque, Saddam Hussein não tinha o apoio da Rússia.
Na sua avaliação, qual será o papel da ONU nessa nova fase da guerra civil síria?
Eu penso que a ONU age exatamente como no período da Guerra Fria. Ela está imobilizada, como no Vietnã e no Afeganistão. Vai debater o tema, condenar, mas não poderá agir. Quando falamos de conflitos dessa magnitude, são questões debatidas no Conselho de Segurança, que prevê o direito a veto para membros permanentes, como é o caso da Rússia. Nenhuma resolução será aprovada. A ONU tem uma estrutura que impede uma atuação de fato contra membros permanentes. Será um papel acessório, retórico.