O Project Syndicate publicou nesta terça-feira (23/06) um artigo de Joschka Fischer, ex-ministro do exterior alemão e vice-chanceler de 1998 a 2005. Ele analisa uma mudança do cenário internacional, que segundo ele pode voltar a ter apenas duas superpotências.
“A cúpula do G-7 mais recente se desenrolou tendo como marco o cenário alpino de Garmisch-Partenkirchen na Alemanha. O G-8 não existe mais devido à suspensão da Rússia. O foro é composto novamente pelas potências ocidentais tradicionais. Em tempos de auge de potências econômicas principais, grandes e densamente povoadas, como Brasil, China, Índia e Indonésia, que desafiam o domínio ocidental, muitos acreditam que o sistema internacional existente necessita de uma reforma”, escreve Fischer, que é um dos fundadores do Partido verde alemão.
“De fato, é provável o surgimento de uma nova ordem mundial – e muito em breve. E estará definido por dois fenômenos chave: a globalização e a digitalização.
A globalização está permitindo a economias que não estão plenamente industrializadas aproveitar os benefícios da industrialização e integrar-se aos mercados globais – tendência que redefiniu a divisão internacional do trabalho e transformado as cadeias de valor. A revolução nas tecnologias das comunicações digitais ha sentado as bases desta mudança.
Claro, o impacto da digitalização vai além da economia. Eliminou muitas barreiras culturais e ofereceu cidadãos de regiões remotas acesso à informação e ideias de todo o mundo. Na medida em que o desenvolvimento econômico impulsionado pela globalização aumenta as receitas, esta participação cultural vai conduzir sem dúvida a uma maior participação política, em especial entre a crescente e exigente classe média. No entanto, essa tendência já apresenta dificuldades aos governos em suas tarefas de controle e seguimento nacional.
No entanto, em termos de equilíbrio econômico de poder, o impacto da globalização e digitalização segue sendo um tema difícil de prever. Apesar dessas tendências terem indiscutivelmente estimulado o auge econômico de alguns países em desenvolvimento, o ocidente, em especial os Estados Unidos – possuem a vanguarda tecnológica e de inovação. De fato, a liderança norte-americana no tema – junto com seus enormes ativos de capital e sua cultura empresarial dinâmica, ilustrada pelo Vale do Silício – poderia em última instancia fortalecer sua postura global.
No entanto, como as economias emergentes – a China e a Índia – estão trabalhando arduamente para estimular a inovação sem deixar de aproveitar a margem para se atualizar tecnologicamente, também é possível que uma contínua globalização e digitalização impulsionem uma não hegemonia do Ocidente na ordem internacional. Só o tempo definirá se estas economias conseguirão desafiar as potências estabelecidas.
Inclusive se os Estados Unidos – e em certa medida a Europa ocidental – conseguirem conservar a vantagem competitiva, é pouco provável que conservem o controle geopolítico global que tiveram desde a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, depois do colapso da União Soviética se tornasse a única superpotência mundial. De fato, apesar dos Estados Unidos continuarem sendo a potência dominante em termos militares, políticos, econômicos, tecnológicos e culturais, sua hegemonia global parece ter se dissipado.
Na realidade, a supremacia geopolítica global dos Estados Unidos não durou muito. Depois de sentirem o peso de uma série de guerras impossíveis de ganhar contra oponentes muito mais frágeis – e no entanto indomáveis – os Estados Unidos se viram obrigados a se retrair em si mesmos. Os vazios de poder que deixaram criaram crises regionais – entre as quais se destacam as do Oriente Médio, Ucrânia e os Mares da China Meridional e Oriental – e contribuíram para a instabilidade e a desordem.
A pergunta que se faz agora é o que vai substituir a Pax Americana. Una possibilidade é voltar ao tipo de ordem descentralizada que existia antes da Revolução Industrial. Nessa época, a China e a Índia eram as maiores economias do mundo, posição que vão recuperar durante este século. Quando isso acontecer, poderiam unir-se às potências tradicionais – os Estados Unidos e a Europa, assim como Rússia – para criar uma espécie de "pentarquia" similar ao sistema de equilíbrio de poder da Europa no século XIX.
Porém, há sérias dúvidas sobre a capacidade da maioria destes países para assumir papéis de liderança global. É impossível prever o futuro da União Europeia, dados os desafios e crises sem precedentes que enfrenta. O futuro da Rússia é ainda mais incerto. Até agora não tem sido capaz de se desfazer dos fantasmas do império perdido e muito menos de deter a deterioração de sua sociedade e sua economia. A Índia tem o potencial que lhe permitiria desempenhar um papel importante em nível internacional, mas lhe falta muito para alcançar a estabilidade e a prosperidade necessárias para isso.
Dessa forma, só sobram Estados Unidos e China. Muitas pessoas previram o surgimento de uma nova ordem bipolar ou inclusive uma nova Guerra Fria onde a China substituiria a União Soviética como rival dos Estados Unidos. No entanto, isso também parece improvável porque, entre outras coisas, no mundo interconectado de hoje os Estados Unidos e a China não podem permitir que o conflito e a concorrência obscureçam seus interesses comuns.
Assim como estão as coisas, China está financiando a dívida pública dos Estados Unidos e, em certo sentido, subsidiando sua autoridade global. Por sua vez, China no teria podido obter seu rápido crescimento econômico e sua modernização sem acesso aos mercados norte-americanos. Em poucas palavras, os Estados Unidos e a China dependem um do outro. Isso mitigará em grande medida os riscos que o surgimento de uma nova potência global gera inevitavelmente.
Com estes antecedentes, parece provável que a nova ordem mundial sea similar à ordem bipolar da Guerra Fria, mas só superficialmente. No fundo, se caracterizará pela colaboração e as concessões em nome dos interesses compartilhados.
O G-7 representa uma ordem que se extingue. Está na hora de preparar-nos para o G-2”.