
O Brasil, reconhecido em todo o mundo pela sua agenda em defesa do desenvolvimento sustentável e palco de momentos históricos para a fixação das metas ambientais, embarca a partir de 1º de janeiro no governo de Jair Bolsonaro depois de reduzir pela metade, nos últimos 12 anos, a emissão de carbono.
Para Izabella Teixeira, uma das principais articuladoras do Acordo de Paris, firmado em 2015, e ex-ministra do Meio Ambiente nos governos Lula e Dilma (2010-2016), a tradição da diplomacia brasileira e o eventual amadurecimento do governo de transição pesarão sobre as declarações desconcertadas da próxima administração.
Teixeira, que também é co-presidente do Painel Internacional de Recursos da ONU e senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), falou ao JORNAL DO BRASIL em conferência do think tank no Rio de Janeiro sobre a importância do enquadramento do desmatamento nos mecanismos de combate à corrupção.
A senhora defende que o desmatamento seja encarado como uma das facetas da corrupção. Como o governo deve agir sob esse novo parâmetro?
Cerca de 85% do desmatamento no Brasil, que ocorre predominantemente na Amazônia, é resultado de crimes ambientais promovidos por quadrilhas, e a base de motivação desses crimes é a corrupção, por meio de grilagem de terras, venda ilegal de madeira, compra de licenças e autorizações do serviço público. Basta ver o processo histórico de prisões de infratores ambientais e do desmonte de quadrilhas dentro de órgãos ambientais e de autorização. Há um sistema que vive dessa ilegalidade. Na minha gestão, tivemos que demitir vários funcionários envolvidos em más práticas e que contrariavam as legislações ambientais e do servidor público. O Brasil vem fazendo nos últimos 15 anos enormes esforços para reduzir o desmatamento e teve a maior contribuição na redução de carbono no mundo dentro dos termos de mudanças do clima. É absolutamente importante que tenhamos isso associado às novas estratégias de combate à corrupção. Essa questão possivelmente será avaliada pelo futuro ministro da Justiça [Sergio Moro] como uma nova envergadura de combate ao crime organizado. A sugestão, que vem sendo discutida por muitas pessoas, é que o Brasil vá para um novo patamar de combate à corrupção.
Como isso se daria na prática?
As instituições do Estado, como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, os sistemas de inteligência no Brasil e as próprias Forças Armadas e a Funai têm acúmulo de conhecimento para fazer esse enfrentamento. Como, aliás, já está sendo feito. O próprio MPF já deu sinais objetivos sobre isso quando a procuradora-geral da República [Raquel Dodge] criou há três meses uma força tarefa à semelhança da Lava Jato para combater o crime ambiental na Amazônia, incluindo também o tráfico de animais, e estruturou isso como uma prioridade de sua gestão. A Amazônia não pode ser desmatada ilegalmente.
O presidente eleito fez declarações contra o Acordo de Paris e recuou. Propôs a fusão dos ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura e também voltou atrás. Qual é a sua avaliação?
O Brasil é um país reconhecido internacionalmente no debate sobre a sustentabilidade e da mudança do clima. Sediamos a principal conferência, a Rio 92, que gerou o regime climático proposto, assinado e coordenado pela diplomacia brasileira no governo do então presidente Fernando Collor, e que viabilizaria o Acordo de Paris. O papel do Brasil e sua política externa é muito importante na agenda da mudança do clima. Parece que o novo governo, obviamente, precisa amadurecer mais a partir das informações que estão recebendo durante a transição, e acredito que o próprio presidente eleito tem sinalizado isso publicamente, para ter mais clareza sobre as informações que cercam estes acordos internacionais. O que li na imprensa sugere afirmações que não dialogam com o escopo do Acordo de Paris, que não tem nenhuma imposição. Nele, o Brasil ofereceu com o apoio do setor privado, governamental e da sociedade uma visão que dialoga com o problema internacional de redução de emissões associadas ao carbono e promove seu desenvolvimento a partir de uma matriz energética equilibrada, na qual o país pode ter mais ambições, e de uma agricultura de baixo carbono que fará o agricultor ganhar mais dinheiro.
De que forma o Brasil se beneficiaria?
Precisamos fazer o Brasil assegurar novas exportações e ser mais competitivo. É uma agenda que dialoga com os caminhos do desenvolvimento do Brasil. Temos o Código Florestal a ser cumprido. As metas do Brasil em Paris trazem seu cumprimento no bojo da suas propostas e falam no fim do desmate ilegal. Em nenhum momento o texto menciona todo o desmatamento. Embora o Brasil tenha 100 milhões de hectares de terras degradadas e seja desejável soluções para não mais desmatar, mesmo com autorização, há situações em que a supressão de vegetação, como na fronteira agrícola móvel, se fará necessária e é preciso respeitar a propriedade privada. O Código dá esse limite.
Nesse cenário, como vê a possibilidade do Brasil sediar a Conferência das Partes da ONU (COP25) em 2019?
O governo de transição teve pouco tempo para se apropriar de todas as informações e compreendê-las. Mas não sei se a futura administração optará por sediar a COP25. É preciso tomar a decisão até o fim da conferência, em dezembro, na Polônia. É um consenso de que era a hora do Brasil. Existem custos para sediar o evento, mas é preciso compreender o papel importante da liderança do país não só na agenda soft power, mas nas soluções para a agenda de baixo carbono no curto e médio prazo que podemos mostrar ao mundo. Temos a melhor matriz energética. Os países estão correndo para alcançar o Brasil. Temos florestas, uma agricultura importante que pode e deve cumprir o Código Florestal, inovação tecnológica, uma senhora empresa agrícola que é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), um senhor instituto de pesquisa de uso da terra e monitoramento de queimadas que é o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que provém grandes cientistas para o mundo, como a vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), Thelma Krug. Temos Ciência.
O novo chanceler, Ernesto Araújo, nega as mudanças climáticas…
Não podemos negar a existência das mudanças climáticas. Existem, são algo disruptivo. Agora, depende obviamente de como o governo eleito conduzirá isso. Há um acúmulo enorme na nossa diplomacia, que eu chamo de diplomacia do carbono, reconhecida no mundo pela sua excelência na capacidade de negociação e de busca de soluções e de equacionamento, além de conduzir uma agenda robusta do ponto de vista bilateral e de interesses. Muitos países têm orgulho de manter uma agenda bilateral com o Brasil nesse tema. Acho que isso se amadurece no futuro governo. As instituições, como o Itamaraty, o Ministério da Fazenda e o BNDES têm sua visão. Dependerá das diretrizes do futuro governo. Nós, da sociedade, vamos trabalhar sempre em prol do Brasil.
O desmatamento na Amazônia cresceu 40% entre agosto de 2017 e de 2018. O que se perdeu no meio do caminho?
Estamos oscilando na taxa de desmatamento desde 2012 porque precisamos avançar em novos instrumentos e estratégias de combate ao problema. Não adianta apenas fiscalizar. Parte do desmate está associado a pessoas que não têm nenhuma alternativa de renda. Tem gente que derruba uma árvore por R$ 5 ou R$ 10 na Amazônia. A alternativa é o desenvolvimento, geração de emprego, inclusão social. Quando fizemos o Bolsa Verde, por exemplo, o desmatamento nas áreas protegidas foi reduzido, porque foi oferecida uma alternativa de renda para uma população que não dispõe de nenhuma.
O desmatamento é o único desafio?
Precisamos ver o Brasil, o Brasil precisa ver a Amazônia e a Amazônia precisa ver o que ela quer do Brasil. Não adianta querer impôr à região, com mais de 28 milhões de habitantes, um modelo enquanto lá as dinâmicas de uso de território determinam certos padrões de ocupação urbana. Muita da supressão da vegetação tem a ver com expansão urbana. A estratégia da redução do desmatamento tem a ver com o uso mais estratégico de inteligência, que o Brasil já tem muito acúmulo; as Nações Unidas reconhecem isso. Em 2016, a ONU publicou o relatório do crime ambiental e a capa foi o Ibama como um reconhecimento do trabalho brasileiro. Mas precisamos gerar desenvolvimento sustentável na Amazônia. Temos que entender como regularizar o uso das terras públicas, aumentar a eficiência na gestão do Estado, e compreender os interesses dessas populações. Elas têm demandas importantes sobre mobilidade, acesso aos meios de produção, geração de emprego, fim da pobreza, trabalho escravo, prostituição infantil, vulnerabilidade às doenças. Isso tudo precisa estar na equação de como o Brasil quer promover o desenvolvimento da Amazônia. Enquanto não conseguirmos conciliar esses dois mundos, o desmatamento ilegal continuará, infelizmente, mesmo com o combate, aparecendo como alternativa de sobrevivência a esses brasileiros, assim como o garimpo ilegal.