Professor do Instituto de Geografia da Uerj e autor do livro “Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol”, Gilmar Mascarenhas uniu o trabalho acadêmico à paixão que carrega desde a infância. Aproveita os estudos e palestras ao redor do Brasil e do Mundo para conhecer os estádios e as instalações de diferentes clubes, povos e culturas. Em conversa de uma hora e meia em Niterói, onde o Botafogo, seu time do coração, já atuou por diversas vezes, o especialista em geografia dos esportes analisou as consequências dos megaeventos esportivos no Brasil e a realidade atual do públicos que frequenta estádios.
Qual é sua relação não acadêmica com o futebol carioca?
Meus pais vieram ao Rio do Recôncavo Baiano, uma área onde quase não tinha futebol. Na chegada à metrópole, ele funciona como um elemento que ajuda na construção de uma nova identidade. O Botafogo vivia a época áurea de Garrincha, Didi, Zagallo. Desde então, todos da minha família são botafoguenses. Essa relação me motivou a fazer pesquisas sobre o futebol.
A Copa do Mundo no Brasil e as Olimpíadas no Rio trouxeram grandes reformas e novos estádios para os locais se adaptarem a essas competições. Qual foi o impacto?
Os megaeventos esportivos impõem instalações superdimensionadas em relação à demanda das cidades-sede. O impacto da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos era muito mais suave até o final do século XX. As competições eram realizadas em instalações já existentes. A eliminação do Brasil para a Itália na Copa de 1982, na Espanha, foi em um estádio acanhado, o Sarriá, que era comparável a São Januário e às Laranjeiras.
Por que aconteceu essa mudança nos últimos anos?
O século XXI trouxe a mercantilização do futebol, com presença constante de empresas e patrocinadores. Essa nova economia demanda novos espaços. A TV passou a ser decisiva, e essa força midiática também faz demandas para melhorar a cobertura. De fato, melhorou bastante. Tenho um colega que diz: “o estádio virou estúdio”. Assim surgem os elefantes brancos, instalações muito mais sofisticadas do que o necessário.
Qual é a principal diferença entre as construções e reformas no Brasil e as que ocorreram em outros países-sede de megaeventos esportivos nos últimos anos?
Minha crítica está na adaptação à realidade brasileira. Na Alemanha, as obras para o Mundial de 2006 estavam adequadas ao poder aquisitivo deles. No Brasil, as arenas caem como paraquedas. São um desrespeito à realidade socioeconômica do país.
A elitização do Maracanã é a única responsável pelos públicos do Carioca?
Não é, não. A situação socioeconômica da região metropolitana do Rio também tem um peso grande.
Até a final do campeonato, o público mais alto foi de 28.215 pagantes. O que afasta o torcedor do estádio?
O país vive uma crise, e a recessão sempre vem mais forte no Rio. O aumento da violência é outro fator. As pessoas têm menos dinheiro para gastar e mais medo de sair de casa. Todos esses fatores pesam. Outra questão é a perda de força dos estaduais, um processo irreversível que tem a ver com a nova economia do futebol. Ela privilegia escalas mais abrangentes, como competições nacionais e sul-americanas.
Sendo assim, por que os estaduais ainda existem?
Os campeonatos estaduais permanecem apenas por questões políticas. Ocorreu um processo chamado de metropolização do futebol. Esvaziam-se as cidades menores e os subúrbios, que tinham clubes fortes antigamente. Lembro que Itaperuna, no interior do Rio, já chegou a ter quatro estádios. O interesse da mídia e da televisão é concentrar o foco em poucos clubes. Caso contrário, pulverizaria as atenções.
Onde entra a política no debate de estádios e arenas?
A Copa e as reformas coincidem com a conjuntura das eleições de 2014, na disputa Dilma x Aécio. O debate sobre os estádios é afetado por essa polarização política. Me chamam de petralha ou comunista só porque eu critico as arenas.
Você estagiou e estudou em cidades de clubes europeus milionários. Os estádios por lá também são elitizados?
A população europeia tem acesso ao esporte. O Parque dos Príncipes, estádio do Paris Saint-Germain, tem preços acessíveis para a realidade local. A exclusão de torcedores na Europa é muito menor do que no Brasil. A maior parte da torcida organizada do PSG que comparece aos jogos vem da periferia.
Que particularidade do Rio você destaca nessa questão das arenas?
O Rio de Janeiro é uma cidade onde as marcas da exclusão são muito fortes. É a segunda metrópole mais escravista da história. Nossa arenização tem feições de racismo e higienismo. Contém elementos letais. É uma revanche da elite contra quem ousou ser protagonista da festa. Nos outros estados, aconteceu a mesma coisa. Fui uma vez ao Itaquerão em um jogo do Corinthians e não tinha nenhum negro.
Que soluções os clubes podem apresentar contra a elitização dos estádios?
Repopularizar alguns estádios é impossível. Até a arquitetura é sofisticada. O Itaquerão tem acabamento em mármore! O futebol atual é mais para consumir do que para se envolver. Uma das soluções recuperar a alma é criar, ao menos, um espaço sem cadeiras, para a torcida mais intensa. Acho bem interessante o projeto de reforma das Laranjeiras, que tem algo nesse sentido.
Os programas de sócio torcedor podem ajudar?
Possuem bons resultados e facilitam o acesso ao estádio. O Inter tem uma categoria para torcedores de baixa renda que funciona como uma cota para eles no estádio. É uma das respostas possíveis.
E as autoridades?
Deveriam atuar para manter estádios públicos, estatais e populares, mas com conforto.