Sinceridade necessária

Entrevista com Ricardo Fischer

Foto: João Neto/LNB
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Conversar com Ricardo Fischer sempre rende. O armador do São Paulo fala nesta entrevista exclusiva sobre as dificuldades enfrentadas pelo tricolor neste início de temporada 23/24, o baque para o Corinthians após a derrota na Sul-Americana em 2019, e não foge de perguntas espinhosas como a briga entre CBB e LNB e arbitragem no NBB.

 

Nas Quadras: Reformulação de um time é complicado. Reformulação de um time no Brasil, então, é mais complicado ainda. O São Paulo reformulou o elenco para esse NBB e demorou um pouco a engrenar na temporada. Passado quase um turno da competição, qual a sua avaliação deste momento do time na temporada? [nota: o São Paulo está em 10º com 6 vitórias e 8 derrotas]

Fischer: Vou pontuar algumas para ajudar a entender esse momento da temporada. Quando me apresentei, se eu não me engano, foram, estourando, 30 dias de férias que o time teve depois das finais do NBB. Recentemente, estive em um podcast com o Paulinho Boracini falando de como se preparar para a temporada e como é essa cultura de treinamento. Basicamente, no Brasil, temos 10 meses de temporada e 30 dias de férias. E nestes 30 dias, ainda sim, treinamos muito. Só que o corpo precisa de uma parada.

Precisamos deste "respiro" de duas semanas para esquecer tudo da temporada e começar a preparar. Agora, imagina, você pega somente duas semanas de férias, chega e tem que treinar nas próximas duas semanas, e 10 dias depois tem o primeiro jogo do Paulista. Foi uma loucura. Neste jogo de estreia com o Osasco, jogamos com 4 jogadores do principal e o resto foram jogadores da base. Não dá, com tão pouco tempo, chegar e jogar em alto nível. Mesmo com todas as dificuldades, tivemos oito vitórias consecutivas e chegamos confiantes ao final four do Paulista. Só que tivemos um baque emocional muito alto com a derrota para o Corinthians na semifinal. Não é questão de soberba, mas estávamos muito confiantes no trabalho. E não teve descanso. Saímos direto do Paulista para a estreia do NBB contra o Franca. Ali a gente tirou um pouco de força e fez um grandíssimo jogo contra a Franca (vitória apertada dos Francanos por 100 a 92). Como não tivemos tempo de assimilar a derrota da semifinal para o Corinthians, chegamos para o segundo jogo contra o Bauru com o psicológico muito abalado. Resultado: uma derrota dura com 20 pontos de diferença. Somente quando o time conseguiu parar (o NBB teve a parada do Panamericano) para treinar que conseguimos nos reunir, conversar e fazer uma autocritica de que tínhamos que melhorar.

E não foi fácil mudar. Tivemos uma troca de armação no elenco com a saída do Elinho. Os jogadores estavam acostumados com o estilo de jogo do Elinho e ele tem um estilo completamente diferente do meu. Demora um pouco de tempo para entrosar com o meu estilo de jogo. Só agora que estamos começando a nos entender e acho que é por isso que as vitórias estão vindo. Não posso deixar de citar as lesões que nos atrapalharam. Eu torci o pé e fiquei fora de dois jogos. O Coelho machucou lá nas partidas que disputamos no Sul (Caxias e União Corinthians), e o Betinho também se lesionou. Acredito que agora tem tudo para começarmos a melhorar, subir e ficar entre os quatro.

 

Você acha que essa pressão psicológica tem relação com o alto nível que é esperado do vitorioso projeto de basquete do São Paulo?

Quando acertei a minha vinda para o São Paulo, conversei com o Rossi [João Fernando Rossi ex-diretor executivo de Marketing do São Paulo] exatamente sobre esse alto nível esperado do São Paulo. O histórico de disputas e vitórias nestes 4 anos de projeto do São Paulo é gigantesco. Além do histórico, quando você joga em clube de camisa, não tem esse de "ah, vamos ver, vamos ficar entre os oito e a gente vê o que a gente faz". Não, é para buscar títulos. É essa mentalidade de São Paulo.

Nas últimas duas temporadas, você esteve em 3 situações diferentes. No Brasília, você tinha expectativa de ser o protagonista, no Flamengo, você chega para resolver um problema crônico que o time tinha de armação, e agora você está vindo para o São Paulo não só para substituir o Elinho, mas também para ter um ataque mais agudo depois da perda de alguns jogadores como Marquinhos. São dois anos que você está transmutando o teu jogo de forma muito rápida. O que você tem que fazer para se adaptar a essas três situações?

A primeira coisa que eu trabalho é o meu mental. Depois tenho uma conversa com o técnico, para entender o que ele espera, o que ele quer. Não só de mim, mas do time como um todo.

Nessa temporada em Brasília, eu trabalhei com um dos melhores técnicos que trabalhei na minha vida. O Dedé (do Brasília) é um cara fantástico. Foi especial trabalhar com ele. Pena que foi por tão pouco tempo. Como temos uma ótima relação, ele foi o primeiro a saber da minha saída do Brasília para o Flamengo.

Quando eu fui para o Flamengo, era uma situação completamente diferente. Cheguei no meio da temporada para ajudar o time funcionar. Precisava injetar uma energia, rodar o time e colocar cada um na sua posição. Isso foi de novo, conversando com o Gustavo [De Conti, técnico do Flamengo]. E no São Paulo, eu comecei dessa forma também. Conversei com o Bruno [Mortari, técnico do São Paulo], que falou que era para continuar com um jogo agressivo. Assim teria mais liberdade para fazer o time rodar. Vou entendendo a necessidade de cada jogo. Tem jogo que é um jogo que vai ser para eu jogar meu pick e passar para os pivôs. Tem jogo que preciso pontuar mais. Então, é muito assim, trabalho o mental para entender o que cada situação precisa.

Fischer jogou pelo Flamengo em 2016 e depois em 2022/23 Foto: Deco Pires/LNB

Vamos falar um pouco da sua passagem pelo Corinthians. Tem uma pergunta só que eu quero te fazer sobre o Corinthians em 2019, que para mim é o divisor de águas do projeto. Quão dolorida foi para vocês aquela derrota para o Botafogo na sul-americana? Aquilo ali foi o divisor de águas mesmo?

Foi, foi. Dói até hoje. Para mim, ali era a cereja do bolo de um projeto que fazia dois anos e estava em um momento tão especial. Se eu não me engano, 7, 8 vitórias consecutivas, jogando muito bem. Naquela Sul-americana, a gente ganhou o primeiro jogo dentro do ginásio Oscar Zelaya (ginásio do Botafogo) por 20 pontos de diferença. Só que teve um jogo contra o Pinheiros nesse meio entre este jogo 1 e jogo 2. Perdemos por um ponto com uma cesta do Betinho lá no ginásio Wlamir Marques. Ficamos frustrados com essa derrota e acabamos perdendo o foco na final. Quando chegou o dia, me lembro a visão do ginásio lindo, com 6 mil pessoas. Falei para o grupo: "cara, a gente não pode perder esse jogo assim, é uma coisa, tá lindo isso aqui".

Mas tem muito mérito daquele time do Botafogo. O Leo [técnico Léo Figueiró, na época técnico do Botafogo] junto com o Cauê [Verzola], Jamaal e Coelho fizeram jogos incríveis e nos venceram. Dói até hoje essa derrota. É um título que eu queria ter tido com a camisa do Corinthians.


Vamos sair um pouquinho de quadra, o Fischer atualmente é o presidente da Associação de Atletas Profissionais aqui do Brasil. Não sei se vocês sabem, teve uma pequena confusão no pós-temporada entre a Liga Nacional de Basquete e a CBB. As duas partes procuraram vocês?

Procuraram, as duas partes procuraram. E fomos muito cobrados em falar de que lado estávamos. Desde o começo eu falei: "não existe lado, a gente tá falando do basquete brasileiro". Não é falar "eu sou lado da CBB, mas por que eu sou lado da Liga?". Não existe esse lado. Queria aproveitar, quero muito falar aqui do fantástico trabalho do advogado da associação, o Felipe Trunfo. Foi ele que rapidamente marcou duas reuniões, tanto com a Liga quanto com a CBB, para entendermos as ideias de cada um e para tentar ajudar de alguma forma com a visão dos jogadores. Também gostaria de parabenizar todos os jogadores. Foi uma das primeiras vezes que a gente viu um mutirão mesmo, todo mundo.

 

Recentemente, a associação de atletas postou uma nota comentando sobre a questão dos salários atrasados de jogadores. O que pode ser feito para a gente tentar amenizar essa situação e dar uma segurança maior para os atletas?

Primeira coisa: a situação comentada na nota aconteceu comigo. E foi muito frustrante. Fiz questão de passar para o pessoal da Liga. Como é que sou presidente da Associação de Atletas, e acontece isso? Qual o respaldo que eu tenho de falar assim: "cara, se associe que você vai ter segurança". Eu falei com a Liga que não tem que envolver jurídico para passar a posição da Liga. A posição da Liga deve ser clara: pague integralmente o atleta o que o acordo diz. Essa deveria ser a posição da Liga. O que ninguém quer é, com dois meses de campeonato, sair pipocando que jogadores estão com salário atrasado. E isso é uma das coisas que eu acabo sendo punido, né? Não tenho problema nenhum, eu boto minha cara para bater, só que as pessoas têm que diferenciar sobre o atleta Ricardo e o presidente. Eu sou presidente da associação, eu faço toda a defesa dos atletas, aconteceu comigo, tanto que eu soltei uma nota da associação, pela associação, não fui eu que escrevi a minha nota, poderia, eu quase escrevi. Que logo depois também eu fiquei sabendo, isso eu não falei para ninguém, quase ninguém sabe, que eu fui proibido de dar entrevista durante os jogos. Foi no jogo de Franca, o nosso primeiro jogo, quando soltamos a nota e eu fiquei sabendo, na emissora, amigos meus me ligaram, que trabalho, e eu fiquei sabendo disso logo depois do jogo.

Ah, não vamos deixar o Ricardo falar, porque pode ser que ele entre nesse mérito e não seria bom, sabe? Só que isso é um absurdo, é um absurdo acontecer isso, isso é censura, entendeu?

A minha ideia é: tem um prazo da inscrição do seu clube e tem que estar quitado tudo com os atletas. Não existe você, no último dia da inscrição, fazer um acordo com algum jogador que talvez nem esteja mais no time. Isso é uma cultura totalmente errada. Qual é o sentido disso?

Ora, se tem uma data da inscrição, teoricamente 2 a 3 meses entre uma temporada e outra, nesses 3 meses você tem que estar quitado. Não existe você começar uma temporada não quitada. A ideia do nada consta é começar a temporada sem dívidas, mas hoje começamos a temporada com várias dívidas. A gente sabe a dificuldade do esporte brasileiro aqui, de você arrecadar dinheiro, eu entendo isso, é difícil os clubes terem saúde, é difícil arrecadar, está complicado para todo mundo. Eu tenho dois restaurantes aqui em São Paulo. Sei como é empreender, sei como é que é difícil arrecadar, mas tem que ter uma lógica. O time arrecada, aí fala "tá, eu preciso pagar esse cara", então você paga essa dívida. Mas aí o cara que está no time? O pensamento é "ah, não, tudo bem, chega lá eu faço um acordo, e vai jogando". E assim são sempre os mesmos times. É uma coisa de sentar e rever urgente. Não é só para a segurança do atleta, é pela imagem do basquetebol brasileiro.

 

Preciso falar de uma coisa que me incomoda profundamente que é a arbitragem. Sei que a associação não tem gerência em relação a isso, mas te pergunto como um jogador que sofreu na pele um erro absurdo por conta de uma situação dessa. Estou me referindo ao erro de arbitragem quando você jogava pelo Bauru no jogo 3 da final do NBB, em 2016. A arbitragem, acho que não é só no NBB, mas mundial, caiu muito de nível. No NBB, os árbitros têm se mostrado cada vez mais inseguros e cometendo erros frequentemente. Existe alguma conversa com a Liga ou com o CBB, para ter alguma melhora nisso? Porque os erros se acumulam, os jogos ficam mais tensos por conta disso, e prejudica o espetáculo, né? Tem tido alguma conversa em relação a isso?

98% dos atletas reclamam disso. O Gustavinho Lima está trabalhando na Liga e ele gostaria de saber das pautas do que os atletas mais reclamam, e todos reclamam da arbitragem.
Não sei se são cursos, não sei se passa pela profissionalização. É aquilo: como os arbítrios não ganham tanto, normalmente eles têm outros empregos. Então o árbitro tem que apitar hoje no NBB, aí amanhã na LBF, no domingo tem o 3x3. O cara apita cinco, seis lugares diferentes, sem descanso. O árbitro é um ser humano, ele também vai errar, ele também, se não descansar, não vai performar. Eu acho que esse é o primeiro ponto, porque aí, sim, conseguiria evoluir a arbitragem e ter menos erros. Entendo que erros vão existir, afinal, eles são seres humanos e a gente erra. Vamos tentar conduzir melhor o tipo da conversa. Tem várias coisas dentro do jogo que podem ser, às vezes, conversadas, para entendermos como o árbitro está. Vamos padronizar as coisas um pouco e subir o nível do financeiro. Esse é o caminho que eu vejo.

Assuntos como a arbitragem são assuntos complexos, porém, são legais de serem discutidos. Isso porque, é o que eu estava falando esses dias, já estou ficando velho, e umas coisas que eu estou brigando, que não serão para mim. Será para a geração que vem. Quero ver as coisas para evoluir nosso basquete, porque eu quero ver o basquete melhor. É com muita felicidade que eu estou vendo os novos dirigentes das equipes serem ex-jogadores. E são sempre por estas conversas difíceis, e ao mesmo tempo muito boas, que brigarei sempre. Só assim conseguimos evoluir nossa modalidade.

Você confere a entrevista completa em formato podcast neste link. 



Ricardo Fischer em ação contra o Flamengo
Fischer jogou pelo Flamengo em 2016 e depois em 2022/23


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