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Consenso do Rio: Brics abrem caminho para desenvolvimento sustentável

Especialistas dos países do grupo sugerem alternativa ao neoliberalismo imposto no século passado

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A Conferência Brics no Século 21, realizada nesta semana no Rio de Janeiro, gerou uma pauta propositiva batizada de Consenso do Rio, em alusão ao Consenso de Washington formulado em 1989 cujo objetivo era ampliar o neoliberalismo. O novo documento é assinado por especialistas e intelectuais do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul, e apresenta 11 estratégias econômicas, políticas e científicas. A ideia é promover o crescimento sustentável desses países, a partir de uma forte presença do Estado, com foco no pleno emprego, redução da pobreza e da desigualdade social.

A trajetória ainda inicial de uma integração dos Brics, abordaram os especialistas, pode possibilitar um desenvolvimento econômico com distribuição de renda. A criação do Novo Banco de Desenvolvimentos dos Brics e do Acordo Contingente de Reserva, que devem ser apresentados oficialmente na próxima Cúpula que será realizada em Fortaleza, são importantes passos para essa a associação. Ainda falta, porém, acreditam, planejamento efetivo ao Brasil e à África do Sul, como foi implantado na China e na Índia nas últimas décadas.

O Consenso do Rio destaca o elevado desempenho econômico e social dos Brics frente aos países industrializados avançados e lembra que, apesar da crise que ainda vivem, elites teimam em manter a política de mínima participação do Estado na economia e autorregulação do mercado, para pagar menos impostos. São 11 itens propositivos como um conjunto de estratégias que vêm sendo usadas ou que os especialistas acreditam que devam ser adotadas pelos Governos.

Entre elas estão a garantia de uma forte presença reguladora do governo na economia, especialmente em setores estratégicos, e compromisso em garantir bens básicos para a população; forte sistema de bancos públicos de desenvolvimento; compromisso com políticas fiscais anticíclicas; controle de capitais para evitar ondas financeiras especulativas; e política de integração econômica estrategicamente planejada.

A formulação de uma carta contra o neoliberalismo se torna possível agora devido ao colapso do próprio sistema, diz José Carlos de Assis, presidente do Instituto de Estudos Estratégicos para a Integração da América do Sul (Intersul), entidade que organizou a Conferência junto à Coppe/UFRJ. Proposta parecida, lembra, seria quase impossível de ser apresentada na década de 1990, por exemplo, quando o modelo dominou os cadernos de economia de jornais do mundo inteiro, com exceção da China e do seu entorno asiático.

“O Consenso do Rio só é possível hoje por causa do fracasso prático do neoliberalismo, que ainda se arrasta. O sistema social-democrata, não como ficou conhecido no Brasil mas como é em sua essência, está sendo destruído na Europa. Nos Estados Unidos, se não fosse a determinação de Obama, os americanos estariam perdidos”, declarou Assis ao Jornal do Brasil.

Planejamento estratégico, integração e participação da sociedade são essenciais

Dércio Garcia Munhoz, professor de Economia da UnB até 1996, ex-presidente do Conselho Federal de Economia e do Conselho Nacional da Previdência Social, alertou para o fato do Brasil ter não possuir capacidade de planejamento, comentário reforçado pelo especialista Santosh Mehrotra, que também criticou o planejamento recente, mas pouco eficaz, da África do Sul. “Não apenas o Brasil, mas, na América Latina, todos os países perderam a habilidade de planejamento estratégico”, alega Santosh. 

Santosh Mehrotra é um indiano PHD em Economia pela Universidade de Cambridge e Conselheiro do Governo da Índia. Ele explica que, analisando a trajetória dos Brics, percebe-se uma certa falta de foco em quatro aspectos – no comércio, no investimento, no campo financeiro e na cooperação. A China, por exemplo, é o principal parceiro comercial para todos os outros integrantes do grupo, mas o contrário não acontece. O investimento entre os países também ainda “não é exatamente grande”. 

A questão financeira e de cooperação parecem ser as que estão melhor encaminhadas, acredita, com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics e do Acordo Contingente de Reserva, que podem ser anunciados oficialmente durante a próxima reunião do grupo, e os mecanismos de compras públicas que as quatro nações possuem. 

O fato dos países ainda não estarem completamente alinhados, porém, oferece um grande potencial de articulação para um desenvolvimento sustentável e mais duradouro, como indica Rasigan Maharajh, sul-africano doutor em Filosofia pela Universidade de Lund, da Suécia, e economista especializado em inovação, que foi Coordenador Nacional de Ciência e Tecnologia, no Projeto de Transição Política durante o primeiro governo democrático da África do Sul.

Rasigan defende uma regulamentação e reforma das agências de classificação de risco e a necessidade de retomada do planejamento a longo prazo: “O curto prazo é muito pouco recomendável ao planeta. (...) O capitalismo de mercado, na ausência de uma redistribuição de renda, produz oligarquias antidemocráticas, com medidas anticoncorrência e favorável a desigualdades sociais." 

A solução para o crescimento, explica, não viria apenas da conquista de um aumento do PIB, é preciso questionar se os Brics não oferecem a chance de quebrar paradigmas e criar um mundo melhor, em um debate que precisa ser construído com a participação da sociedade: “Se ficarmos só no clássico não vamos mudar a economia.”

Vladimir M. Davydov, doutor em economia e diretor do Instituto da América Latina junto à Academia de Ciências da Rússia, apontou para a necessidade de preparação para um nova crise, que pode cobrar um preço muito alto aos países. Criticou ainda a utilização de entidades extremamente conservadoras como os Ministérios da Fazenda, que funcionam como um obstáculo burocrático para a busca de soluções, que precisam vir rápido. “Não podemos ser lentos nesses esforços. Falta energia aos líderes do Brics.”

Para Flávio Damico, responsável pela área dos Brics no Itamaraty, há uma grande incompreensão e pessimismo sobre o papel e desempenho da coalizão, vide artigos e reportagens que vendo sendo publicadas pela imprensa norte-americana, por exemplo. A Conferência Brics no Século 21 possibilitaria, então, um “pensamento dos Brics sobre os Brics, dispensando intermediações”.

O evento teve início no dia 20 de maio e foi encerrada nesta sexta-feira (23), no Hotel Novo Mundo, no Rio de Janeiro. Foi organizada pelo Intersul (Instituto de Estudos Estratégicos para a Integração da América do Sul) em parceira Coppe/UFRJ, e contou com o patrocínio do BNDES e apoio da Caixa, do Ministério do Planejamento, do Governo Federal, da construtora Odebrecht e da Sinergia.

Confira a Íntegra do 'Consenso do Rio' abaixo:

BRICS NO SÉCULO 21 / CONSENSO DO RIO

Como participantes da Conferência BRICS no Século 21, que reuniu no Rio, de 20 a 23 de maio, especialistas de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, expressamos a convicção de que é tarefa fundamental dos governos e das sociedades de nossos países manterem como prioridade absoluta promover o desenvolvimento econômico como esteio do desenvolvimento social com sustentabilidade ambiental, tendo em vista o imperativo de garantir o pleno emprego e reduzir a pobreza e a desigualdade econômica, o que jamais ocorrerá numa sociedade estagnada.

Consideramos lamentável o fato de que, não obstante a aguda crise social e de desemprego por que passam os países industrializados avançados, a maioria deles se recusa abertamente ou se omite em tomar iniciativas no campo fiscal e monetário para a retomada do crescimento econômico. Com isso prejudicam, sobretudo na Europa, grande parte de sua população assim como às populações dos demais países, inclusive emergentes, que se defrontam com o estreitamento do mercado mundial e com as pressões comerciais superavitárias que visam a compensar a ausência de políticas fiscais e monetárias ativas.

Entendemos que a superação da presente crise nos países industrializados avançados não pode ser uma escusa para uma escalada bélica no mundo. Não é demais lembrar que estamos na era nuclear e isso cria um virtual nivelamento de poder destrutivo entre nações nuclearizadas. Não há como sair ganhando numa guerra mesmo convencional na era nuclear. Os temas geopolíticos têm necessariamente que ser levados à mesa de negociações, respaldados pela força democrática dos povos, livres de qualquer tipo de pressão e sanções unilaterais.

No campo econômico e social, é indiscutível que os países BRICS estão tendo um desempenho superior ao dos países industrializados avançados, cujas elites ainda teimam, para pagar menos impostos, em manter o receituário do Estado mínimo e da autorregulação dos mercados - não obstante o colapso dessas teses no bojo da crise em curso. Por isso, afirmamos nossa concordância com as linhas gerais das estratégias que vêm sendo usadas ou que devem ser usadas por nossos governos, e que reputamos sejam, em grande parte, as causas essenciais desse desempenho. São elas:

1.      Forte presença reguladora do governo central na economia, especialmente em setores estratégicos, e compromisso em garantir bens básicos para a população;

2.      Presença de um forte sistema de bancos públicos de desenvolvimento, que faz a correia de transmissão entre planejamento e o financiamento de médio longo prazo;

3.      Presença de fortes empresas estatais estratégicas, com capacidade de aplicar as decisões de planejamento e exercer um poder de arraste sobre o setor privado;

4.      Compromisso com políticas fiscais anticíclicas, isto é, expansivas na recessão e contracionistas no boom;

5.      Controle de capitais para evitar ondas financeiras especulativas;

6.      Política de integração econômica estrategicamente planejada;

7.      Forte compromisso com a adoção de estratégias de desenvolvimento sustentável e estabelecimento de acordos de padronização para os respectivos resultados;

8.      Busca comum de desenvolvimento tecnológico que permita que os países BRICS se tornem mais competitivos em termos globais;

9.      Troca de recursos educacionais e culturais com o suporte dos governos e para o desenvolvimento de pesquisas comuns;

10.  Os governos BRICS precisam trabalhar por um comércio mais equilibrado movendo-se no sentido de um maior balanço no processamento nacional de matérias primas;

11.  Compromisso efetivo dos governos para colocar em prática as políticas de combate à pobreza e a desigualdade econômica;

12.  O Conselho dos BRICS deve estar pronto para agir como mecanismo de implementação de todos os princípios citados a qualquer momento que for requisitado para isso.

Por certo que nem todos os países BRICS usaram da totalidade desses instrumentos para o enfrentamento das consequências internas da crise internacional. Contudo, mesmo uma observação superficial leva à conclusão de que os que melhor se saíram foram justamente aqueles que usaram mais decididamente uma combinação mais ampla desses recursos de política econômica.

Rio de Janeiro, 23 de maio de 2014.