Em artigo publicado nesta terça-feira (22) pelo jornal espanhol El Pais, o professor de economia da Universidade do País Basco, Roberto Velasco, afirma que após décadas de esquecimento por parte da doutrina neoclássica, a análise econômica contemporânea recuperou, com certo entusiasmo, a percepção de que “as instituições importam”. No texto intitulado Argentina, cuesta abajo (algo como Argentina, ladeira abaixo, em tradução livre), que faz referência ao tango Cuesta abajo, composto por Carlos Gardel, ele faz um traçado das forças institucionais do país sul-americano e as consequências das medidas do governo de Néstor e Cristina Kirchner.
Para o economista, no avanço dos países em direção à eficiência institucional, a noção de compromisso desempenha papel central. Por isso que “onde exista mal uso das instituições políticas o valor dos compromissos alcançados pelos agentes será reduzido, as políticas serão de baixa qualidade e, inevitavelmente, terão um viés de curto prazo”. Ele defende que as instituições se entendem como procedimentos para estabilizar expectativas e converter o “tempo histórico em tempo lógico”.
Nesse sentido, Velasco observa que os determinantes institucionais do desenvolvimento econômico argentino foram analisados por organismos multilaterais e por especialistas do país. Em 2006, o Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID) publicou informe relatando que as políticas públicas argentinas apresentam baixa qualidade em matéria de estabilidade, aplicação efetiva, coerência e eficiência, outorgando a classificação “baixa” ao índice global das políticas. Por outro lado, no mesmo documento, foi dada pontuação “alta”, em índice global, a Brasil, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, México e Uruguai, reservando ao Chile a categoria “muito alta”. O relatório também apontou que o nível de corrupção em investimentos empresariais é alto na Argentina, frente aos índices “baixo” para o Chile e “médio” para Brasil, Colômbia e México.
A observação é amparada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que representa as Nações Unidas na região. A respeito da Argentina, a Comissão afirma que “uma economia na qual as condições futuras são muito incertas e, ao mesmo tempo, se desconfia muito da discrição do governo terá muitas dificuldades para estabelecer um quadro apropriado de políticas”
Velasco pondera que alguns anos antes do relatório, os professores Pablo Spiller e Mariano Tommasi realizaram uma serie de recomendações para dar maior coerência e estabilidade às políticas públicas argentinas, após concluírem que as características institucionais e a instabilidade política levaram a um Congresso não profissional e que preza por medidas de curto prazo, a uma administração pública ineficiente e a uma justiça pouco independente e incapaz de exercer um contraponto aos demais poderes.
Os professores também apontaram, em 2007, a volatilidade em várias políticas de grande relevância (fiscal, comercial, regulatória, social), circunstâncias que conduzem a resultados econômicos e sociais inferiores aos desejáveis.
Cenário internacional
Além disso, o professor espanhol recorda que a historia argentina de descumprimento de seus compromissos internacionais é interminável. Ele destaca qua a Argentina é o país com mais causas ativas no Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI).
“Não à toa se trata do país com mais causas ativas no CIADI por denúncias apresentadas por empresas e investidores de todas as condições”, escreve Velasco.
Ele também menciona as dívidas milionárias com o Clube de Paris, associação de 19 países que negocia o pagamento de dividas bilaterais entre Estados criada em meados do século XX para solucionar, com precisão, outra suspensão de pagamentos do país sul-americano. Entre os temas pendentes do Clube de Paris está a dívida argentina com a Espanha.
Segundo Velasco, se algo distinguiu o governo argentino após a suspensão de pagamento que antecedeu o famoso corralito – a mais vultosa e prolongada da história econômica contemporânea – foi acompanhar a inadimplência (mais de US$ 900 bilhões) com insultos aos credores privados de todo o mundo, a quem o presidente Kirchner qualificou, em numerosas ocasiões, de "jogadores de cassino", "abutres poupadores", entre outros xingamentos. "Isto após tentar quem os credores “engolissem” mais de 75% da dívida externa do país", atenta Velasco na publicação.
Para o economista, talvez o mais irritante tenha sido que “um governo especialista em violar seus compromissos firmados e os direitos de propriedade pudesse se atrever a pedir explicações e requerer compreensão e cooperação dos investidores estrangeiros, ao passo em que destruía os últimos resquícios de sua confiança”. Enquanto isso acontecia, “os capitais nacionais fugiram rapidamente às mudanças, esperando na proteção de qualquer contratempo circunstâncias favoráveis para o regresso oportunista, em mais uma de suas demonstrações patrióticas preferidas. "Agora, o processo pode estar se repetindo”, alerta o professor basco.
Néstor Kirchner
Valesaco destaca que no mandato de Néstor Kichner, a quem classifica como “presidente caudilhista próximo ao chavismo que jamais reuniu seu Conselho de Ministros”, a Argentina aumentou a limites insuportáveis a insegurança jurídica das empresas que ofereciam serviços públicos utilizando diversas fórmulas, como congelamentos irracionais de tarifas, ou estabelecimento de impostos abusivos à exportação.
Nesse sentido, grupos de “piqueteiros” oficialistas recebiam subsídios do governo e obedeciam, direta e cegamente, aos Kirchner, aponta no artigo o economista, citando como exemplo o bloqueio durante meses da ponte que une a Argentina e o Uruguai, e a mobilização para impedir o aumento dos preços em supermercados e postos de gasolina.
Ainda, Velasco cita a política de luta contra a inflação, complementada com a mitigação da imprensa independente e com a persistente manipulação do Índice de Preços, elaborado pelo Instituto de Estatística (Indec). Para ele, todos representam elementos de manipulação, que agora foram retomados.
“Reargentinização”
Velasco segue criticando o governo argentino, afirmando que os Kirchner começaram a "reargentinizacão" das antigas empresas públicas e privadas detidas por investidores estrangeiros para que seus proprietários dessem entrada na participação acionária aos empresários argentinos próximos à Casa Rosada. Em seguida, ele cita a a expropriação da Aerolineas Argentinas e a nacionalização de fundos de pensões privados, fato que fez o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, declarar que os Kirchner haviam convertido o Estado em "um fraudador em série". Mais comedido, o noticiário de Wall Street classificou a decisão de "grande vergonha" e "erro de proporções monumentais".
Assim, afirma no artigo, o governo argentino causou o êxodo de empresas multinacionais (Shell e Suez, entre outros) e que o investimento direto internacional preferisse se voltar a outros países, como Chile, México ou Brasil. Em relatótio da CEPAL, de 2008, El Salvador superou a Argentina no saldo de investimento líquido estrangeiro no biênio anterior.
“Como resultado de todo este processo”, prossegue Velasco, “a atual presidente argentina Cristina Férnandez Kirchner deteve 51% das ações da YPF, que pertence ao grupo Repsol, descumprindo as normas do Direito Internacional e do acordo para a proteção recíproca dos investimentos entre Espanha e Argentina, que data de 3 de outubro de 1991”.
Segundo o economista espanhol, a decisão foi duramente criticada por todos os países sérios do mundo e que aumentará o isolamento internacional de “um país cujo governo se move cada vez mais em direção ao ‘nacional-populismo’, amparado por grupos dogmáticos de criação própria, enquanto quase metade da população está submetida ao clientelismo político e abaixo da linha da pobreza”.
Ao final do artigo, Velasco dispara:
“A única certeza é que sua esposa (Cristina Kirchner) continua a conduzir, não já sem rumo, senão ladeira abaixo, um país que, como o tango deste título, está cansado de "levar pelo mundo a vergonha e a dor ter sido e não ser mais".