ECONOMIA
Quando o crédito deixa de servir ao país e passa a servir ao mercado
Por LUÍS NASSIF
Publicado em 17/11/2025 às 11:43
Alterado em 20/11/2025 às 13:19
Luís Nassif Foto: reprodução
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Por muito tempo, a política econômica brasileira conviveu com uma inversão silenciosa, mas decisiva: o crédito — que deveria ser meio para financiar investimentos e ampliar o bem-estar — foi transformado em fim em si mesmo. Ou melhor: em um setor de negócios para o mercado financeiro. A economia real virou figurante.
A fala recente do presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, expôs essa distorção com a sutileza de um choque elétrico. Ele classificou a caderneta de poupança como um “Robin Hood às avessas”: os mais pobres, desinformados e sem alternativas deixam seu dinheiro rendendo quase nada, enquanto o crédito barato que a poupança deveria irrigar acaba abastecendo setores que não são prioritários — e, frequentemente, não devolvem o benefício a quem bancou a conta.
É um mecanismo de transferência de renda às avessas: segundo ele o pobre financia o crédito do rico.
O fenômeno não começou agora. Pérsio Arida, quando presidiu o BNDES, deu forma conceitual ao que o mercado sempre quis ouvir: tratou a diferença entre os juros do banco de fomento e a Selic como um subsídio, uma anomalia a ser corrigida. A meta não era aumentar investimento, produtividade ou indústria — era evitar que o crédito público “desorganizasse o mercado”. Para isso, criou até uma moeda contábil que neutralizasse a diferença. Foi a vitória da lógica financeira sobre a lógica do desenvolvimento.
A mesma natureza ideológica reaparece no interinato de Michel Temer e no período Paulo Guedes, quando o FGTS — originalmente uma poupança trabalhista, criada para dar segurança ao trabalhador — virou produto de prateleira do mercado financeiro.
- Temer liberou mais de R$ 40 bilhões em 2017, sob o pretexto de estimular a economia.
- Guedes institucionalizou os saques anuais e permitiu empréstimos com garantia do FGTS, transformando o fundo em lastro para aumentar o volume de crédito e o lucro bancário.
Em todos esses episódios, o padrão é o mesmo: o interesse do mercado se sobrepõe ao interesse do tomador de crédito.
O mutuário do antigo BNH, o comprador de eletrodomésticos, o pequeno empresário que precisa do Finame, a família que depende do crédito consignado — todos eles se tornam apenas insumos para o funcionamento da engrenagem financeira. A ponta final, o usuário do crédito, nunca é tratada como objetivo.
Em qualquer país que tenha projeto, o crédito é meio. Aqui, o crédito virou moeda de troca, lastro, mecanismo de arbitragem, instrumento de política fiscal disfarçada e, sobretudo, fonte de renda para o sistema financeiro.
Essa construção ideológica, inaugurada na era Fernando Henrique e mantida sem retoques até hoje — inclusive por governos que se dizem “desenvolvimentistas” — transformou a política monetária num regime de proteção ao mercado. O Banco Central passou a enxergar o crédito não como motor da economia, mas como campo de negócios. A avaliação da política monetária se faz em função das expectativas do mercado, não do efeito sobre o investimento, o emprego ou o consumo.
O resultado desse arranjo é palpável: juros altos persistentes, crédito caro, baixo investimento e crescimento medíocre. O país financia, involuntariamente, o próprio atraso.
No fim das contas, a pergunta é simples: o crédito existe para desenvolver o país ou para remunerar o mercado?
Hoje, a resposta, infelizmente, não deixa margem para dúvida.
Os álibis técnicos
As justificativas para a manutenção de Selic elevada atropelam todos os fundamentos da lógica.
Diz-se, por exemplo, que se a inflação está acima do teto da meta, há a necessidade de aumentar a Selic para reduzir o nível de atividade econômica, desaquecendo a economia.
Vamos a uma análise simples desse efeito Selic, comparando o final de 2024 (quando houve enorme desvalorização do real) e agora.
Momento 1 — dólar alto
- US$ = R$ 6,18
- Produto = R$ 1.000
- CDC = 7,91% a.m.
- Prestação (12x) = R$ 132,08
Momento 2 — Selic sobe real aprecia
- US$ = R$ 5,30 (queda de 14%)
- Produto cai para R$ 857,61
- CDC sobe suavemente para 8,06% a.m. os 2 pontos a mais na Selic mentalizados..
- Prestação cai para R$ 114,14
- A prestação cai 13,8%. O consumidor ganha poder de compra.
Isso implica:
A Selic mais alta não contraiu a demanda via crédito.
A Selic mais alta aumentou o poder de compra, graças ao câmbio.
E a maior influência na inflação – o câmbio – fica nas mãos do mercado, com o BC correndo atrás e se valendo apenas da Selic.
Uma aberração para quem acredita no manualzinho, mas a perfeita descrição do Brasil.
É por isso que:
- a poupança vira um “Robin Hood às avessas”,
- a diferença entre juros do BNDES e Selic é tratada como “subsídio” ao invés de política industrial,
- o FGTS é usado para rodar o motor do mercado financeiro,
- e os programas de crédito pensados para desenvolvimento são transformados em produtos para bancos e fundos.
Conclusão
O raciocínio prova:
- A Selic alta encareceu muito pouco o crédito, porque o spread absorve tudo.
- A Selic alta valorizou muito o câmbio — efeito bruto e imediato.
- A valorização do câmbio reduziu preços de bens comercializáveis, derrubando o IPCA.
- A queda da inflação nada tem a ver com “desaquecer a economia” via juros.
- A Selic alta, paradoxalmente, aumentou o poder aquisitivo, o que é o oposto do que o Banco Central diz.
- O que puxou a inflação para baixo foi: o câmbio valorizado não o aperto monetário no crédito.
E o que é déficit público tem a ver com isso? Quem quiser eu conte outra.