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Ameaças aos estados produtores de petróleo

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Venho sustentando, há mais de década, os entendimentos que aqui retomo e em que persisto, quanto à matéria dos “royalties” do petróleo e às participações do Estado do Rio de Janeiro, seu maior produtor no Brasil (pelos dados oficiais da Agência Nacional do Petróleo no gráfico abaixo, em jan/2019 o Estado produziu 72% de tudo quanto se produz nesta terra, sendo de notar-se que o Estado 2º colocado, o Espírito Santo, produziu somente 12%).

 

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Gráfico: Distribuição da produção de petróleo por estado (Foto: Reprodução)

O tema tem sido e remanesce submetido a uma disputa politicóide desvairada, visando a interesses unicamente pessoais e absolutamente amadorística, jejuna e hostil ao ordenamento jurídico constitucional. O Brasil tristemente sofre de uma patologia adversária ao que o Direito Constitucional consagrou com o nome de “Sentimento Constitucional” (vide, por exemplo, mestre Pablo Lucas Verdú). Vivemos dias de apetites vorazes da mediocridade, da ignorância solerte e da ojeriza à cultura.

Preguei desde mais de 10 anos atrás, minha irresignação, através de artigos em respeitáveis órgãos, de palestras e até de ações judiciais perante o STF (MS 28.885 e MS 31.031). A Suprema Corte, enfrentando clima nacional de histeria política, negou-se adentrar-lhes o mérito.

Pois bem. Persistindo, passo a resumir os núcleos principiais do meu pensamento válido ainda hoje.

A sede constitucional dos direitos dos Estados-membros e Municípios produtores de petróleo à “participação no resultado da exploração de petróleo” está no § 1º do art. 20 da Constituição Federal, a dizer que “É assegurada (...) aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, (...) participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no RESPECTIVO TERRITÓRIO, [1] [na respectiva] PLATAFORMA CONTINENTAL, [2] [no respectivo ] MAR TERRITORIAL ou [3] [na respectiva ] ZONA ECONÔMICA EXCLUSIVA, ou compensação financeira por essa exploração.”

Do que somente os entes federativos produtores de petróleo têm direito a “participação no resultado da exploração de petróleo” (sic, CF/88, § 1º do art. 20).

Não no têm os Estados e Municípios não produtores.

Portanto, estender participação no resultado da exploração de petróleo” (sic, § 1º, art. 20, CF/88) a Estados e Municípios não produtores é inconstitucional.

Idem, quanto ao atinente ao petróleo extraído do mar (da plataforma continental, do mar territorial ou da zona econômica exclusiva). No mar, a relação de pertinência é de “respectividade” para com o ente confrontante, é topográfica, é geodésica, importa em “receita própria” (STF, MS 24.312/DF e ADIN 2080-RJ).

O § 1º do art. 20 da Constituição também não permite distinguir entre petróleo do pré-sal ou petróleo do pós-sal, não permite restringir, tudo é petróleo, não importa a camada geológica de onde advenha. Restringir incide em inconstitucionalidade.

Consequência: o rateio da participação (§ 1º, art. 20, CF/88) tem de obedecer ao princípio constitucional da proporcionalidade, isto é, proporcionalidade ao respectivo “resultado da exploração de petróleo” (sic, § 1º do art. 20 da CF/88). Tratar diferentemente disto é incidir em inconstitucionalidade.

De fundamental relevância, ademais, é que o termo “União” como o emprega o texto constitucional ao tratar da propriedade (art. 18, CF/88: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios...”), muito cuidado, é expressionalmente polissêmico, ora significando “comunidade jurídica total”, ora significando “comunidade jurídica parcial”. Ensinamento magistral do mestre dos mestres HANS KELSEN (Teoria Geral do Direito e do Estado).

Que adita em conseqüência e relevantissimamente: “A teoria tradicional identifica, erroneamente, a federação com o Estado federal total”.

Destarte, o art. 18 da CF/88 ——que consagra, positiva este conceito de KELSEN—— importa num somatório, numa equação, em que o membro da esquerda (parcela única), o total, a República Federativa do Brasil, significa “União”, somatório. Já o membro da direita é o que enuncia as parcelas daquele total.

Mas, este somatório, tem como parcela também integrante a expressão “União”. Logo, o mesmo vocábulo (União), aparecem com duas acepções distintas (lá, à esquerda, comunidade jurídica total, aqui, à direita, comunidade jurídica parcial; cf. HANS KELSEN). Portanto, ocorre o fenômeno lingüístico da polissemia (cfr. CANOTILHO).

E a conclusão indesprezável é que, então, como petróleo é bem de propriedade da “União” (art. 20, IX, CF/88) enquanto comunidade jurídica total (HANS KELSEN), também o é dos Estados produtores e dos Municípios produtores eis que estes entes federativos são integrantes, componentes da “União” enquanto comunidade jurídica total (HANS KELSEN e art. 18, CF/88).

E outra conseqüência disto é que os Estados PRODUTORES e os Municípios PRODUTORES (COMUNIDADES JURÍDICAS PARCIAIS, parcelas do somatório em que se constitui a União enquanto comunidade jurídica total cf. art. 18, CF/88) TAMBÉM DETÊM PROPRIEDADE SOBRE O BEM PETRÓLEO. MAS SOMENTE ESTES ESTADOS-MEMBROS E NÃO TODOS OS DEMAIS. CONTRARIAR TAL IMPERATIVO É INCIDIR EM INCONSTITUCIONALIDADE.

Aspectos teóricos correlatos referentes ao conceito de propriedade e seus correlatos (jus fruendi etc.) serão objetos de futuros trabalhos.

Mas restou desenhado gravíssimo panorama de inconstitucionalidades e de “limitação constitucional” estabelecida pelo inc. I do § 4º do art. 60, CF/88, na sua acepção explícita (preservação do modelo de forma federativa do Estado brasileiro) e ao princípio republicano e ao Estado Democrático de Direito.

Nada obstante, o povo brasileiro está assistindo, na conjuntura política dos dias de hoje, atonitamente, à algaravia do esquartejamento daqueles valores constitucionais, ao sabor de interesses politicóides bastardos, de insensibilidade patriótica, sanha, esta, que arrasta governo, parlamento, partidos políticos e mesquinhos interesses eleitoreiros.

À grave mélange vem de se agregar nos últimos dias uma oportunística ação direta de inconstitucionalidade no Supremo, a ADI 6233/2019, ajuizada por Associação Brasileira de Exploração e Produção de Petróleo e Gás que vai prosperando meio que sorrateiramente.

Tal ADI 6233 impugna a Lei nº 5.139/2007 do Estado do Rio de Janeiro que dispõe sobre o inalienável direito-dever de o Estado do Rio de fiscalizar seus próprios bens minerais e suas “receitas próprias” (STF, MS 24.312/DF e ADIN 2080-RJ).

É de recear-se, pois, que logre proveito dos percalços da atual borrachice do medíocre cinzento ambiente jurídico-político nacional.

* advogado, Procurador do Estado-RJ ap., Professor de Direito Constitucional ap.