Desde sempre, as manifestações artísticas da palavra se defrontam com o seu próprio ser ou não ser. Que gênero nos representa melhor: a tragédia ou a comédia. O embate atravessa os séculos, mas tem o seu momento mais importante no século XVII, na França, quando dois dos maiores dramaturgos da história , Molière (a comédia) e Racine (a tragédia), constroem as suas obras e disputam ribalta, poder, público e a posteridade. E essa história, embalada pela música de Caetano Veloso, é o fio condutor de “Molière – Uma comédia musical”, de Sabina Berman , em cartaz no Teatro Bloch.
Sabina Berman, principal dramaturga mexicana da atualidade, desenvolve uma trama de que forma o prazer seja de escrever, de atuar, de amar, de guerrear, de impor, é a principal tônica da vida. O que poderia se derramar em um clássico dramalhão, pelo destino trágico de seu principal personagem, o comediante Molière, é um encenação leve e divertida. A história de Molière é contada por Racine, que além de dramaturgo, era o principal historiador da Corte. O jogo entre o texto teatral, a ficção e a realidade da história mostram que cada um quer se ver glorificado, seja de que maneira for.
O elenco de jovens e veteranos atores e atrizes possui como ponto em comum a excelente movimentação de corpo e a modulação de voz perfeita, sem gritos, exageros, com a fala de absolutamente todas as sílabas. Uma rara oportunidade. Matheus Nachtergaele é um Molière de peito aberto , um clássico herói trágico, que se esconde atrás daquilo que escreve, sua comédia tem as mesmas críticas que o texto de Sabina Berman apresenta. Renato Borghi como o Cardeal, Monsenhor Péréfixe, é a perfeição da interpretação. Impositivo naquilo que deseja e manipulador ao mesmo tempo, a atuação como Monsenhor acaba por ser síntese do conflito: o prazer nos é vedado ou temos que seguir o que desejamos.
A direção de Diego Fortes, ganhador do Shell de 2017, consegue reunir em duas horas (sem intervalo) diversas formas de encenação: a música de fundo, as trapalhadas da Commedia dell’Arte, um musical sem canto praticamente, um número de dança genial (funk) com Matheus e Renato. Élcio Nogueira Seixas (Racine), Nilton Bicudo (Louis XIV), Rafael Cardoso(La Fontaine) ganham forma com as alterações das histórias dos personagens. E, para caracterizar essas mudanças, a escolha dos adereços de cabeça é muito eficiente: as perucas estilizadas do estilo da época, chapéus como o de La Fontaine cheio de borboletinhas, pequenos e delicados animais como em suas fábulas. E o grand finale do cocar de Renato Borghi, o nosso Tropicalismo, o nosso manifesto antropofágico, aproximando América Latina do teatro clássico.
Para narrar que o destino do herói é o que define qual o “melhor” gênero, a morte e a dissolução na tragédia e o “happy end” da comédia, o cenário apresenta um luminoso escrito Molière, que fica intacto enquanto nosso dramaturgo tem sucesso ou redenção e o último e caído nos momentos em que sua carreira afunda. Mas o prazer é sempre uma contradição. E vemos que, enquanto Molière que se dedica a causar alegria, acaba doente e pobre, Racine tem uma vida de glórias. Mas, para a posteridade, a enorme consagração de Molière, não nos deixa dúvida. Os muitos trágicos que nos perdoem, mas a alegria e o prazer são fundamentais. É o que assistimos na imperdível “Molière – Uma comédia musical”.
*Professora do Depto. de Comunicação da PUC-Rio e doutora em Letras
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SERVIÇO
Molière – Uma comédia musical
Teatro Adolpho Bloch (R. do Russel, 804, Glória; Tel: 2558-3862). Com Matheus Nachtergaele, Élcio Nogueira Seixas, Renato Borghi, entre outros. Direção: Diego Fortes. Texto de Sabina Berman, tradução de Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi, adaptação de Diego Fortes e Luci Collin. Sex. e sáb, às 20h; Dom., às 18h. Ingressos a R$ 60 e R$ 30. Temporada: Até 2/9. Duração: 120 minutos. Classificação indicativa: 14 anos