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Entrevista - Lourenço Mutarelli, autor de 'O cheiro do ralo' e ator em 'Que horas ela volta?'

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Enquanto preparava o lançamento de “O filho mais velho de Deus e/ ou Livro IV” – nas livrarias a partir de hoje  -, a Cia das Letras pediu uma sinopse da história a seu autor, o paulista Lourenço Mutarelli, quadrinista mundialmente aclamado, ator em sucessos como “Que horas ela volta? (2005), considerado um dos escritores mais cults do Brasil desde a publicação de “O cheiro do ralo” (2002), levado às telas em 2006. A resposta dele à demanda, acerca de seu novo romance - sobre um homem cuja identidade foi trocada e uma mulher-lagarto vinda de outro planeta, ambos em Nova York -, saiu assim:   

“Às vezes um homem pode se cansar do peso de seu nome, de seu trabalho, de suas relações, de seus amores, de sua rotina, das pessoas que o cercam, de suas crenças e até mesmo de sua realidade. O protagonista de ‘O filho mais velho de Deus e/ou Livro IV’, o novo romance de Lourenço Mutarelli, se sente assim. Ao contrário da maioria de nós, no entanto, ele teve a oportunidade de mudar de vida. De nome. De cidade. Acabou indo parar na Nova York pós Onze de Setembro e foi convidado a entrar em um programa de proteção à testemunha. Para protegê-lo daquilo que ele não viu. Nem acredita. De qualquer forma, quando um homem se cansa de tudo é possível que enxergue as formas ancestrais de todas as coisas”.

Se você farejou lirismo na descrição acima, acertou: Mutarelli, hoje com 54 anos, diz estar em sua fase mais poética. Rompeu seus votos matrimoniais com as HQs (meio no qual criou obras-primas como “O dobro de cinco” e “A confluência da forquilha”). Dedica-se agora à pintura: tem uma exposição de seus quadros para fazer em novembro, no Sesc Pompeia. Vez ou outra, atua: estrela dois longas inéditos que saem este ano, depois da maratona de publicação de “O filho mais velho de Deus e/ou livro IV”: a sessão de autógrafos será hoje, às 17h, em São Paulo, no Bar Pompeu e Pompeia (R. Clélia, 233 - Pompeia). 

Na entrevista a seguir, ele explica o que mudou em sua vida, hoje cada vez mais caseira:

JORNAL DO BRASIL: Depois de três anos longe das livrarias, você volta às letras falando de ETs reptilianos, sexo anal e regimes para emagrecer em “O filho mais velho de Deus e/ ou Livro IV”. Onde esse livro se encaixa na sua literatura?

Lourenço Mutarelli: Minha mulher leu uma das versões dele, quando eu estava escrevendo, e disse: ‘Só você vai rir e gostar dessa história’. Eu respondi: ‘É o que importa’. Hoje, a Lucimar já gosta muito dele, o que me deixa feliz, e um dos meus editores falou que é o meu melhor livro. Eu escrevo “O cheiro do ralo” em cinco dias. Este romance levou quatro anos para ficar pronto. Isso me deu tempo de trabalhar melhor cada palavra. Ele tem mais carpintaria. É mais refinado do que as minhas experiências anteriores na relação com as frases. Teve mais pesquisa, mais estudo. Há estudos que dizem que o filho mais velho de Deus é o Diabo. Mas eu tirei a trama de um lugar inusitado. 

Você costumava dizer que sua cabeça é bastante inusitada, por distorcer o que já é torto. A crítica já comparou sua mente à do cineasta David Lynch, pela estranheza de ambos. O que seria mais estranho?  

Sereias. Sabe esses programas de TV do Discovery Channel sobre coisas estranhas do mundo? Assisto sempre. Eles conseguiram me convencer de que existe o chupacabras, o pé-grande... mas, sereias... Teve um sobre elas, mas eu não embarquei. Teve um outro, tempos depois, mostrando que elas usavam uma espécie de arpão para esculpir, que faziam arte. Isso me pegou. Uma criatura que faz escultura tem um universo artístico. Eu fui por aí... explorar a coisa mais absurda que pudesse existir e mostrar como ela se expressa de modo autoral. Daí os reptilianos, criaturas extraterrestres como forma de lagarto que, dizem, vivem entre nós e comandam a política mundial. Aí eu misturei com a história de um cara que quer emagrecer e botei uma história de amor.  

E onde entra Nova York? 

É uma cidade que nunca me atraiu. Tudo o que mais me irrita na vida – os modismos fúteis de correção política – vêm de lá. Desde o fim dos anos 1970, quando a cidade passou por uma onda de reformas, para se livrar de seu submundo mais barra pesada, ela virou o lar da caretice. Nova York é um shopping center.

Então por que localizar sua história lá?

Porque eu fui pago pra isso. Esse romance é parte de uma coleção que se chama “Amores expressos”, ambientado em diferentes lugares do mundo. Acreditaram que eu, por ser dos quadrinhos, teria identificação com Nova York. Não tive, mas gostei da ideia. Atrasei para entregar, mas entreguei um livro mais bem-acabado.

Mas com a feitura dele você congelou sua trajetória nos quadrinhos. Teremos alguma graphic novel vindo aí?

Peguei alergia de quadrinhos. Doei 90% da minha coleção. Nem os meus artistas preferidos eu consigo ler. Minha vontade de voltar a eles é zero. Dava aula de HQs em São Paulo e tive muitos bons alunos. Mas peguei uma última turma bem difícil. Aí perdi o gosto pelo meio. Essa coisa de uma certa tendência de quadrinhos ter virado moda me afastou. O mundo tá muito chato. Esse meu romance novo bate nessa chatice. Fora isso, tem a pintura. Tenho pintado muito, pintando em cima de experimentos próximos da colagem...

O cinema te chateia também ou ainda há encanto? 

Fiz dois filmes como ator agora. Duas experiências bacanas. “Música para ninar dinossauros”, de Mario Bortolotto, e “Sick, sick, sick”, de Alice Furtado. Mas não tenho visto tanto cinema. Ando ficando muito em casa, por questões pessoais, aproveitando para ver séries com a Lu.   

Alguma preferida?

Tinha muita resistência a “Fargo”, por conta do filme dos irmãos Coen, de que gosto muito. Mas o seriado é incrível. Ewan McGregor está ótimo.

Com a literatura, seu amor anda em alta?

Tenho grandes amigos escritores e já ouvi gente como o Chico Buarque elogiar o meu estilo. Talvez o fato de ele, como eu, ter vindo de outra mídia, no caso, a música, gere identificação. Vim do quadrinho. Pra muitos desses escritorezões, de muito respeito, eu não sou levado a sério como romancista. Sou apenas... curioso. Chico, que foi muito gentil ao falar de mim, também enfrenta preconceito da Velha Guarda dos escritores por vir da canção. O caso é que ainda me sinto confortável na literatura, sobretudo agora, escrevendo com mais cuidado. Minha prosa tem um ambiente agradável, mas você precisa tapar o nariz para atuar o cheiro que sai dele. Eu estou num lugar sombrio.

Existe heroísmo nos seus livros?

Existe sobrevivência. Heroísmo é fazer o que eu faço: sobreviver às dificuldades financeiras do dia a dia tendo que cuidar de muita gente.

* Roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio (ACCRJ)