De acordo com Juliana Rojas e Marco Dutra, dupla de diretores de “As boas maneiras”, que estreia hoje, a ideia para o filme surgiu a partir de um sonho de Marco, no qual duas mulheres viviam em um lugar isolado e cuidavam de um bebê-monstro. “Ficamos atraídos pela dualidade dessa criatura: ao mesmo tempo ainda em formação, inocente, e também com uma voracidade animalesca”, diz Juliana.
Essa matriz onírica aclara o entendimento do filme. Mescla de fantasia, terror sanguinolento e aventura infantil, incluindo humor, erotismo, comentários sobre raça, gênero e classe e efeitos especiais arrojados, a obra é um exemplar sui generis do cinema brasileiro.
Desde a estreia, no Festival do Rio de 2017, não é segredo que a trama envolve lobisomens. Clara (a portuguesa Isabél Zuaa, que morou seis anos no Rio) é uma enfermeira da periferia de São Paulo, contratada para ser a babá do filho que a abastada interiorana Ana (Marjorie Estiano) espera. Guinadas repentinas levarão a criança a braços diferentes dos de sua mãe biológica.
Essa história tem uma São Paulo de fábula como pano de fundo, que evoca filmes antigos da Disney como “A Branca de Neve” e “Mary Poppins”. Já na primeira cena, uma “matte painting” — técnica de cenários pintados usada, por exemplo, em “O mágico de Oz” — representa a metrópole. A opção de introduzir uma dimensão mágica logo no começo diferencia o filme de “Trabalhar cansa” (2011), produção anterior da dupla de cineastas.
Os aspectos sobrenaturais servem como alegoria para questões como dominação social e intolerância à diferença. A São Paulo do filme, por exemplo, é separada por um rio, onde ricos e pobres vivem em margens separadas, enquanto a personagem da patroa mora em uma casa que lembra um castelo. Os cineastas dizem que a inspiração para isso são os diretores que, ao fazer filmes de terror, realizaram também estudos sobre a sociedade, como George Romero com zumbis, por exemplo. “Temos criação de classe média, mas sempre quisemos investigar a questão de classe no Brasil”, diz Marco.
Um dos aspectos mais comentados da obra são seus esmerados efeitos especiais. A dupla de realizadores optou por utilizar tanto efeitos mecânicos, desenvolvidos pelo estúdio paulistano Atelier 69, como computação gráfica, criada por um estúdio da França, que se tornou possível graças ao apoio de um fundo francês. “Os efeitos mecânicos têm força material, transmitem verdade e emoção, enquanto há coisas que só a computação permite”, diz Juliana, citando como exemplo a transformação vivida pelo ator infantil Miguel Lobo.
A direção de arte, de Fernando Zucollotto, também chama a atenção. Em sua primeira parte, o filme usa uma paleta mais restrita e fria, com tons de azul e violeta. Na segunda, a variedade de cores se expande consideravelmente, incluindo amarelo, verde e marrom. Uma transformação importante também passa a personagem principal Clara, que troca atuação comedida no começo por gestos expansivos ao final. Isabél Zuaa, a atriz, define Clara como “alguém que não é muito coerente, que tem falhas de caráter, o que a traz densidade”.
“As boas maneiras” é uma produção da Dezenove Som e Imagens, com coprodução da Globo Filmes e das companhias francesas Urban Factory e Good Fortune Films. A obra venceu o segundo prêmio mais importante do Festival de Locarno e ganhou seis prêmios no Festival do Rio, incluindo o de melhor longa de ficção.