Praticada em vários momentos históricos, por Estados, povos e até pela Igreja católica, a tortura tornou-se crime contra a humanidade desde 1929, na Convenção de Genebra. No entanto, continuou a ser usada ilegalmente em guerras e guerrilhas do século XX. Durante a Guerra da Argélia, travada entre dois partidos revolucionários que lutavam pela independência e o exército francês, o país europeu torturou. Negada pelo governo da França e denunciada por intelectuais e militantes independentistas, a tortura foi confessada pelo general Paul Aussarresses, que admitiu sua prática e a defendeu, em entrevistas e em seus livros, como legítima arma de guerra contrarrevolucionária.
As conversas entre o general francês, na casa dele, na Alsácia, e a jornalista Leneide Duarte-Plon, única brasileira a quem deu depoimentos, é uma das bases para este A tortura como arma de guerra. Neste livro, Leneide Duarte-Plon, mostra como a França exportou para o Brasil todo o arcabouço do terrorismo de Estado, que incluía a tortura e a eliminação física de opositores. O terrorismo de Estado foi implantado pela ditadura militar que se instaurou no país a partir de 1964.
Paul Aussarresses foi adido militar no Brasil de 1973 a 1975 e deu aulas para militares brasileiros sobre o que ficou conhecido como a “doutrina militar francesa” ou “escola francesa”, desenvolvida durante a experiência da Guerra da Argélia. No livro, Leneide mostra como essa doutrina foi estruturada e teorizada no livro A guerra moderna, do coronel Roger Trinquier, que tratava de uma nova forma de guerra, a guerra antissubversiva ou contrarrevolucionária. No contexto da Guerra Fria e da luta americana contra o avanço comunista, a doutrina foi utilizada nos Estados Unidos, na Guerra do Vietnã, e em países da América Latina, como o Brasil, a Argentina e o Chile – todos a partir de golpes militares contra governos democráticos.
No Brasil, Aussarresses era muito próximo do general João Figueiredo e, além de dar aulas sobre tortura, fazia lobby para que o governo brasileiro comprasse armas francesas. Para compor A tortura como arma de guerra, Leneide pesquisou arquivos diplomáticos da França que guardam os relatórios secretos enviados a Paris nos quais o general e outros adidos militares que o precederam analisam a política externa e interna do Brasil. Em seu livro, Aussarresses conta um episódio em que Figueiredo atuou pessoalmente no caso de uma mulher torturada no Brasil e apontada como espiã. Em uma das entrevistas que concedeu a Leneide, o general ratificou esse e outros relatos.
Em seu novo livro, Leneide, citando os casos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog, mostra ainda como os métodos para encobrir crimes de tortura na ditadura no Brasil e na Guerra da Argélia eram parecidos. No caso de Rubens Paiva, os militares esconderam o corpo e venderam a versão, já desmontada, de que o deputado teria fugido, sequestrado por guerrilheiros enquanto era transferido de local pela polícia. A versão do Exército Francês para a morte do francês Maurice Audin, professor de matemática e militante comunista em Argel, foi parecida. O corpo de nenhum dos dois foi encontrado. Quanto a Herzog, ele foi fotografado com uma corda no pescoço na prisão – de forma parecida como acontecera na Argélia, alguns anos antes, a morte de Larbi Ben M’Hidi, chefe do Front de Libération Nationale – partido socialista argelino. De Ben M'Hidi, os militares franceses divulgaram o suicídio por enforcamento, sem chegar ao requinte da foto. A versão do suicídio de Herzog e de Ben M’Hidi também foi desmontada.
No prefácio da obra, Vladimir Safatle ressalta que, “ao centrar sua análise na história do general francês Paul Aussaresses, responsável pela repressão à luta dos argelinos pela independência, Leneide deixou evidente uma conexão nunca antes explorada de forma sistemática, a saber, os vínculos entre os crimes contra a humanidade cometidos pelas ditaduras latino-americanas e a lógica da ‘guerra contrarrevolucionária’ desenvolvida no combate colonialista contra o direito de autodeterminação dos povos. Mas esses vínculos não mostram apenas como se desenvolveu a generalização de práticas de violação dos direitos humanos a partir de uma triangulação entre França, EUA e América Latina. Na verdade, mostram como o colonialismo serviu de laboratório para o modelo de Estado imposto em países como o Brasil durante a ditadura militar.”
Leneide Duarte-Plon começou a produzir a obra em 2008. Além das entrevistas com o general francês Paul Aussaresses, a autora conversou com o general brasileiro Armando Luiz Malan de Paiva Chaves e personagens emblemáticos da Guerra da Argélia, como Henri Alleg, jornalista torturado por homens de Aussaresses e autor do livro que fez história por denunciar, pela primeira vez, a tortura na Guerra da Argélia, e Josette Audin, viúva de Maurice Audin. Para Safatle, Leneide Duarte-Plon é uma jornalista que “une em sua escrita o olhar sistemático de historiadora e a sensibilidade crítica de psicanalista que não se deixa levar por falsos acordos e tem há anos exposto aquilo que muitos no Brasil gostariam de sequer nomear”.
No Brasil, a tortura nunca foi admitida pelo Estado, mas também foi denunciada em livros e entrevistas por intelectuais, jornalistas e religiosos como frei Tito de Alencar, biografado por Leneide e pela jornalista Clarisse Duarte Meireles, em livro-reportagem finalista do Prêmio Jabuti de 2015. A Lei de Anistia não permitiu punições aos torturadores e nem mesmo os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – instaurada em 2012 e que colheu depoimentos importantes, como o do coronel Paulo Malhães, que relatou as torturas e a farsa da morte de Rubens Paiva, tendo sido assassinado pouco depois – criaram condições para uma mudança na interpretação da legislação. Como a tortura é um crime contra a humanidade, ela não teria prescrito, como defendem os militares.
Lançamento, na Argumento do Leblon, será na próxima quinta-feira, dia 16 de junho, e terá debate da autora com o historiador Daniel Aarão Reis, a psicanalista Cecilia Boal e o deputado Wadih Damous, que presidiu a Comissão da Verdade no Rio
A tortura como arma de guerra chega em junho às livrarias, pela Civilização Brasileira. Para saber mais, leia entrevista com a autora no blog do Grupo Record: