Um filme de cinema. A frase ajuda a entender Sudoeste, primeiro longa de Eduardo Nunes, finalmente estreando para o público após quase quinze anos do nascimento do projeto. O roteiro, co-assinado por Guilherme Sarmiento, trabalha ao lado da belíssima fotografia em preto e branco do já consagrado Mário Pinheiro Jr. na construção de um filme dramático e primordialmente estético. Uma obra narrativa, mas que faz referência à linguagem poética de alguns cineastas consagrados pela história do cinema, como Bergman e Tarkovski. Esse último, especialmente, cuja estética é particularmente densa e rara no cinema do Brasil, é referência claríssima.
A direção traz um trabalho cinematográfico carregado, de quem sabe o que faz. Se não experimentou e inventou como esses mestres, Nunes soube seguir bem suas lições. É importantíssimo ressaltar que tais características quase aristocráticas do cinema de “bom gosto” europeu são valores muito distantes, por si só, de conferir valor maior a Sudoeste em relação a produções sem essa pretensão, principalmente se observarmos a quantidade de obras arrebatadoras que atropelam as convenções. Esse esforço, contudo, quando bem encaminhado, costuma nos brindar com belíssimos filmes. No cinema brasileiro de hoje, o resultado obtido por Nunes representa, no mínimo, uma obra atenta a tais convenções e bem diferente do que tem aparecido por aí.
O ambiente é um genérico vilarejo pobre brasileiro, de atmosfera doída, sensível e arcaica, longe da modernidade, com personagens melancólicos e leves ao mesmo tempo. Os homens trabalham na pesca e nas salinas, enquanto as mulheres cuidam da casa. É notável a recorrência desse tipo de ambiente em filmes muito diferentes entre si ao longo da história do cinema brasileiro. Não se trata de um clichê, palavra depreciativa, mas sim de algo que, devido à sua força brutal inerente à miséria, à luta e aos improvisos, invadiu e formou raízes no imaginário nacional como poucas imagens o fizeram. Esse ano mesmo tivemos a chance de assistir ao belíssimo Histórias que Só Existem Quando Lembradas, um exemplo de filme muito diferente de Sudoeste, mas que também faz dessa imagem sua matéria-prima.
Como não poderia deixar de ser em uma produção de um diretor muito atento à cinematografia, as atuações de Dira Paes, Julio Adrião, Simone Spoladore e de todo o elenco são magníficas e garantem a qualidade dramática do filme. As crianças Victor Navega Motta e Raquel Bonfante não comprometem, fato infelizmente raríssimo na filmografia nacional.
A inspiração e as referências claramente vêm de obras consagradas pela densidade e complexidade existencial de seus personagens e de seu universo. É válido reforçar novamente a influência de Andrei Tarkovski, muito sensível no ambiente aparentemente suspenso do resto do mundo que é o vilarejo criado na tela por Eduardo Nunes. Temos aqui um cenário fantástico, de tempo não-linear e materialidade fluida. Momentos diferentes de um tempo exterior à trama se misturam, derrubando assim os muros estúpidos do compromisso e da responsabilidade para com uma realidade fixa, parada, estática, de regras definidas e intransponíveis.
Aqui, os personagens vem e vão, driblam a lógica, mergulham várias vezes no rio corrente do cinema, da arte e da vida, plenos da consciência de que um homem nunca mergulha duas vezes nas mesmas águas, pois essas estão em constante mutação. O imaginário e as alegorias invadem o mundo terreno e material. Nunes aponta, instrumentalizado por essa liberdade desde sua carreira de curtas, para sorrisos, dores e maravilhas que pertencem materialmente à vida de qualquer homem ou mulher. Prova assim, pela milésima vez na história do cinema, que o compromisso inabalável e religioso para com o realismo naturalista que uma gama de realizadores brasileiros se agarra – normalmente a fim de evitar um distanciamento entre o filme a vida de quem assiste ao filme – não passa de ingenuidade e arrogância frente aos inteligentes espectadores. O homem não está amarrado a regras naturais e não se deve reduzi-lo a um operário ou servidor da realidade dada. Ele é, ao contrário, criador do mundo e da vida, dono do futuro e das possibilidades. Sufocar a fantasia é castrar a vida.
Mesmo que não apresente uma grande novidade de linguagem ou proposta inovadora, Sudoeste é lindíssimo e singular em nossa filmografia, qualidades que o credenciam à atenção especial que vem recebendo.