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Ensaio reúne pesquisa sobre o patrimônio histórico do Brasil

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Regina Abreu, Jornal do Brasil

RIO - O livro Os arquitetos da memória, de Márcia Chuva, focaliza uma destas ações necessárias para o estabelecimento das bases do Estado-nação moderno. Trata-se de uma ação no âmbito da cultura e da memória: a constituição dos quadros da memória nacional e a invenção do patrimônio histórico e artístico nacional. O período é o Estado Novo e os personagens giram em torno do então todo poderoso Gustavo Capanema, ministro da Educação, do fundador do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Rodrigo Mello Franco de Andrade, do arquiteto Lucio Costa e de um grupo animado de idealistas e missionários da nacionalidade, em especial jovens arquitetos que impulsionaram o campo da preservação do patrimônio no Brasil devotando-se à instituição recém-criada SPHAN e liderando profunda remodelação de gostos e valores estéticos no país que culminou com a consagração definitiva do barroco brasileiro como o primeiro momento em que se constituiu uma arte autenticamente nacional (...) com características de renovação e de mudança, em oposição à simples reprodução de um arte reinol em terras coloniais .

A historiadora Márcia Chuva sinaliza o quanto o projeto cultural do regime varguista, dos anos 30 e 40, foi relevante para a constituição das bases de um Brasil que ainda nos parece extremamente atual. Este projeto cultural assinala a autora incorporado à ossatura material do Estado mediante a criação de agências na administração pública dentre as quais o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e com a constituição de um corpo técnico, se nacionalizava engendrando uma rede de alianças que se ampliava ao entrelaçar redes locais dispersas no território, no exercício cotidiano de suas ações de proteção do patrimônio . Os novos agentes do patrimônio arquitetos da memória que se aparelharam no Estado buscaram implantar um projeto de nação do qual foram artífices e cuja consagração construíram, opondo-se à importação de uma cultura europeia: somente com a fundação de um novo tempo, moderno, a nação poderia constituir-se plenamente. E o grande ícone foi a apropriação do barroco no contexto de um ideário nacional fundador das práticas de preservação cultural no Brasil. A autora nos mostra o alcance da ação dos arquitetos da memória formulando uma nova prática social de atribuição de valor a objetos e bens materiais que se transmutaram simbolicamente em elos de identidade unindo todos os membros constituintes da nação.

Apoiada em farto material documental, Márcia Chuva sustenta a tese de que a implementação de ações de proteção do patrimônio nacional foi estratégica para a ampliação das redes territoriais na formação do Estado e para a construção de sentimentos de pertencimento a uma comunidade nacional imaginada, na medida em que essas ações geraram uma territorialização particular da nação, garantindo a permanência, no tempo e no espaço, de objetos monumentalizados.

Num certo sentido, os aquitetos da memória inventaram os quadros da memória nacional, cuja referência primordial das origens da nacionalidade foram associadas estreitamente a imagens das Minas Gerais do século 18. Esses quadros, que hoje aparentam ser naturais, constituíram-se inicialmente a partir de severas lutas de representação, no interior das quais se impuseram, com eficiência impressionante, as representações do período colonial mineiro e de sua conseqüente produção artística como as origens da nação brasileira. A autora nos sugere que esta conquista deu-se à custa de um investimento intelectual, político e simbólico de monta, feito a partir de redes de agentes articuladas com o SPHAN, especialmente integrados pela presença marcante de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lucio Costa ao longo de todo esse processo.

A pesquisa de Márcia Chuva, elaborada inicialmente como tese de doutoramento em História pela Universidade Federal Fluminense, é precisa e minuciosa. Valendo-se da condição de técnica da instituição que sobreveio ao antigo SPHAN, a autora demonstra grande familiaridade com fontes do Arquivo Central do IPHAN revelando estudos de caso sobre processos de tombamento e descortinando para o leitor o cotidiano da ação destes devotados intelectuais do patrimônio. Alguns casos são emblemáticos, como o do processo de tombamento e de preservação da Igreja e da Casa de Oração da Ordem Terceira do Carmo em Cachoeira na Bahia. Consideradas relíquias de excepcionalidade e expressão genuína do barroco, ambas as construções passaram a figurar no rol dos monumentos a serem tombados e protegidos pelo SPHAN em finais dos anos trinta. As trocas de correspondências entre os técnicos e o presidente do SPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, revelam o empenho de todos para que não apenas as duas construções fossem preservadas, mas também todo o entorno. Para a manutenção da harmonia da ambiência do monumento, os técnicos sugeriam ao presidente do SPHAN a compra dos imóveis vizinhos para desapropriação e demolição. O presidente do SPHAN decide acionar o mais rapidamente possível a transação. Preocupado em não obter em tempo hábil a aquiescência do Presidente da República para a transação, como ditava a lei, decide enviar recursos para que o empreiteiro de sua confiança fizesse a compra. Após a desapropriação e a demolição dos imóveis, o empreiteiro como combinado previamente - faz a doação do terreno para a União possibilitando, com a agilidade que o caso merecia, a preservação tanto da Igreja e da Casa de Oração quanto do entorno, ambos necessários para a consecução do objetivo de proteção de uma paisagem monumental.

Casos como este são extremamente reveladores do espírito de guerrilha que vigorava nos primeiros anos do campo do patrimônio no Brasil. Podem também ser lidos como expressões de uma adesão à causa da construção do patrimônio histórico e artístico nacional que ia muito além de um trabalho técnico ou burocrático. Casos que vistos com as lentes de hoje nos parecem muito expressivos de uma relação singular com a construção da nação e do patrimônio público.

Nestes tempos em que vivemos de dilapidação do patrimônio e do erário público, a pesquisa de Márcia Chuva também nos parece sugestiva ao revelar certo espírito missionário de homens públicos como Lúcio Costa e Rodrigo Mello Franco de Andrade. Os estudos de caso e as análises dos discursos impressos nas correspondências avultam-se assim como documentos excepcionais do ethos de uma geração de intelectuais que inaugura também um discurso fundador no campo da preservação, construindo uma genealogia da boa arquitetura universal em que a produção brasileira se enquadrava.

Reafirmando nossa arquitetura como nacional e universal, os modernistas do SPHAN conquistaram a inserção do Brasil e de sua própria produção artística que se tornou hegemônica no mundo civilizado. A estética modernista configurou o patrimônio histórico e artístico nacional. A arquitetura colonial foi privilegiada não somente pela sua ancianidade mas porque lhe foram atribuídas características que, segundo as concepções modernistas, distinguiam-na como primeiro momento de uma produção autenticamente nacional. Aparelhados no SPHAN, os arquitetos modernistas consagraram a própria arquitetura que produziram, seguindo esta linha de pensamento como aquela que efetivamente representava a nação moderna. Construíram assim simbólica e materialmente o patrimônio histórico e artístico nacional mediante a eleição da arquitetura barroca colonial e a sua restauração. E, na repetição, consagraram-se na ordem inversa, construindo materialmente a arquitetura moderna e elegendo-a simbolicamente com patrimônio histórico e artístico nacional. O tombamento da arquitetura moderna deu-se concomitantemente à sua produção. Brasília foi a consagração abslouta da arquitetura moderna. E o SPHAN mantinha-se solidamente vinculado à sua já tradicional origem. Nesse empreendimento, os arquitetos da primeira geração (alem de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, outros arquitetos da antiga seção técnica do sphan, como José de Souza Reis, Alcides da Rocha Miranda) dirigiam os arquitetos da segunda (tais como Sabino Barroso, Glauco Campello, Jaime Zettel e Ítalo Campofioritto, os três últimos, ex-presidentes do iphan), atuando, concomitantemente ou não , na construção de Brasília. Tombou-se Brasília depois que ela já se havia tornando patrimônio da humanidade. Ainda hoje são tombados pelo IPHAN dentre outros bens, aqueles representativos da arquitetura colonial e também da arquitetura moderna.

O livro que agora é lançado pela Editora da UFRJ traz ainda preciosas ilustrações que permitem que o leitor adentre o universo do campo do patrimônio no dia a dia de suas transformações. É impressionante perceber a revolução estética que os arquitetos da memória produziram em tão pouco tempo, consagrando estilos antes condenados ao desaparecimento como as antigas construções coloniais de cidades como Ouro Preto (MG) Parati (RJ) e Cachoeira (BA). Estas marcas do patrimônio sobreviveram ao tempo e hoje se converteram em templos da memória e do turismo num movimento de permanente autentificação do genuinamente brasileiro .

A pesquisadora Márcia Chuva interage com bibliografia atualizada sobre o tema tanto em termos nacionais quanto internacionais, oferece com este estudo uma contribuição importante para o campo de estudos da memória e do patrimônio no Brasil. Uma das qualidades do seu texto relaciona-se ao fato de que, embora tenha sido produzido por uma pesquisadora de dentro da instituição conseguiu alcançar o distanciamento necessário para fazer uma boa reflexão sobre um momento histórico decisivo para a construção do patrimônio cultural no Brasil. A autora tirou partido da sua proximidade com o Arquivo Central do IPHAN para abrir o baú. Oxalá outros pesquisadores sigam suas pegadas e avancem em novas pesquisas sobre os processos e os agentes que moldaram culturas, memórias e patrimônios.