Uelinton Farias Alves, Jornal do Brasil
RIO - À primeira vista, Questão de pele: contos sobre preconceito racial, organizado por Luiz Ruffato, é um livro impactante, forte, agressivo, focado em um tema que ainda hoje é dos maiores tabus na sociedade brasileira.
Ruffato que coordena a coleção Língua Franca, da editora Língua Geral (a primeira obra foi o volume Entre nós, que trata do homossexualismo) expõe em Questão de pele, em textos ficcionais, a problemática da questão racial. Logo no texto de abertura, refere-se à existência de certos setores da sociedade que defendem a existência da democracia racial, e o organizador alude a este fato como uma assimilação ideológica calcada na nossa tradição dos governos autoritários .
É bem verdade que este tema polêmico tem alimentado, secularmente, nossa consciência enquanto cidadãos e até partícipe dos movimentos sociais e de classe, ao mesmo tempo em que nos posiciona ante os embates que, dia a dia, assombram a todos feito uma mazela dos tempos da escravidão, ao arrepio das leis constitucionais e da ordem pública.
O livro em si é uma reunião que traz 14 contos dos chamados ícones de nossa literatura, alguns clássicos, entre os quais Machado de Assis, Lima Barreto e Coelho Neto. Reúne também escritores da nova safra, desconhecidos ou ignorados do grande público, mas que, na verdade, ao longo dos anos, se dedicam, literariamente falando, à discussão do preconceito de cor, com histórias que perpassam diversas fases da vida nacional, sobretudo no período que permeia o século 19, habitado por gênios da ciência e da arte do tope do padre José Maurício, Paula Brito, André Rebouças, José do Patrocínio, Cruz e Sousa, entre outros.
Da geração mais recente, devemos mencionar Nei Lopes (eleito o Homem de Ideias deste caderno, em 2009), Cuti, Cidinha de Paula, Ferréz, Alberto Mussa, Conceição Evaristo e Murilo Carvalho, além de outros antigos, mas pouquíssimos lembrados hoje, como Manuel de Oliveira Paiva, J. Simões Neto e Afonso Arinos. Eis o time que compõe Questão de pele.
Na introdução da obra escrita por Conceição Evaristo, autora que se consagrou pela publicação do romance Ponciá Vicêncio (já traduzido para a língua inglesa), chama-se a atenção para a problemática da invisibilidade do negro na literatura, tema muito recorrente na academia, mas pouco levado a sério. No texto, a escritora mineira destaca que esta invisibilidade prejudica a mulher negra, que enfrenta uma espécie de jogo ambíguo , pois ela é tão subjugada quanto a mulher branca, mas sua situação piora quando comparada ao homem negro, embora este sempre seja visto em papel secundário, de coadjuvante, de subalterno.
Outro destaque do livro é a maneira sempre igual como os negros são vistos pelo meio social, prática literária que já perdura a, pelo menos, um século e meio no Brasil. Evidencia-se, todavia, no conjunto dos contos que a obra nos oferece, um fato bastante aterrador: os personagens das histórias serem, sem qualquer exceção, sempre problemáticos, de classes inferiores, marginais, escravizados pelo sistema, malvistos pela sociedade, sendo que, no geral, trazem o estigma de demoníacos, diabólicos, bêbados etc. Este é o estereótipo da maldade, diga-se de passagem, ou seja, herança da propaganda gravada no inconsciente da era do feudalismo.
Olhando por este ângulo, o livro pode ser encarado como uma obra da tristeza, da dor, do pesar, do ódio, como se todo negro (se já não bastasse a tragédia do Haiti), fosse assim, cheio de malefícios e maldições.
Ao todo, das 14 histórias reunidas no volume, duas merecem ser destacadas em especial: a narrativa A escrava , de Maria Firmina dos Reis (1825-1917) e Pai contra mãe , do consagrado Machado de Assis. Ora, o autor de Dom Casmurro vem sendo paulatinamente resgatado pela academia como afrodescendente (o professor Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, publicou trabalho impecável a esse respeito, já resenhado aqui neste Ideias). Nesse particular, o conto surgido em 1906, no corpo de Relíquias da casa velha, de forte cunho realista, remete a um Machado eminentemente comprometido com a causa abolicionista, mesmo para um texto divulgado após a Abolição.
No caso particular de Firmina dos Reis, trazer à luz atual peças de suas obras literárias (que incluem dois romances, entre os quais o mais famoso é Úrsula, poesias e contos) é prestar uma justa homenagem a grande mulher que ela foi, de porte altivo e guerreiro, e que pelo destino fora aparentada do célebre filólogo maranhense Francisco Sotero dos Reis.
Outro destaque é Lima Barreto, que tem divulgado no livro o conto Clara dos Anjos , que deu origem ao romance de mesmo nome. Texto emblemático, profundamente questionador, ele resume bem, na última fala da personagem-título, um pouco do que é o referencial contextualizado da presente antologia: Mamãe, eu não sou nada nessa vida . Da mesma forma que o personagem de Machado falou, na última linha da sua narrativa, batendo no coração: Nem todas as crianças vingam .
Tirando a narrativa de Cidinha de Paula ( Dublê de Ogum ), Cuti ( O Batizado ), Nei Lopes ( Manchete de jornal ), Alberto Mussa ( A cabeça de Zumbi ) e de Conceição Evaristo ( Ana Davenga ), há histórias bem sofríveis, como O negro Bonifácio (J. Simões Neto), O ódio (Manuel de Oliveira Paiva) e Fábrica de fazer vilão (Ferréz).
Não há como dizer que exista mérito numa obra que expõe o homem (ou mulher) negro de maneira tão deprimente, cavando ainda mais fundo estereótipos e misérias. Mas vale apenas ler aquele apêndice do final, que reproduz um trecho da autobiografia do ex-escravo Mahommah G. Baquaqua, que teve passagem pelo nosso país. Embora sofrida, é o relato mais contundente da presença da escravidão em terras brasileiras, memórias construídas nas suas experiências de vida e de dor.