André Duchiade, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Mário de Andrade publicou em 1939 um artigo em que descrevia fotomontagens criadas por Jorge de Lima. Chamado Fantasias de um poeta, o texto saudava obras criadas com técnicas utilizadas pela primeira vez no Brasil, aparentemente capazes de abrir possibilidades de expressão quase infinitas. Nossas tendências mais recônditas, nossos instintos e desejos recalcados, nossos ideais, nossa cultura, tudo se revela nas fotomontagens. Com imensa felicidade, percebemos que, em vez de uma pura brincadeira de passatempo, estamos diante de uma verdadeira arte, de um meio novo de expressão , destacou o autor modernista.
Esse texto, quase todas as fotomontagens do artista que o inspirou e outras atrações ligadas à modalidade artística estarão reunidas pela primeira vez a partir de terça-feira, na Caixa Cultural, na exposição A pintura em pânico Fotomontagens de Jorge de Lima. Para a curadora, Simone Rodrigues, essa faceta desconhecida do poeta alagoano é uma obra raríssima que permanecia desconhecida e praticamente inacessível :
Ao contrário de outros artistas que trabalharam com fotomontagem no pós-guerra, como Athos Bulcão,e José Oiticica Filho, a obra de Lima não teve reconhecimento e a foi esquecida.
A mostra traz 52 fotomontagens criadas entre meados da década de 30 e 1943, quando foram reunidas em um livro com o mesmo nome da exposição. Quarenta e uma imagens foram restauradas de cópias do livro e 11 são ampliações de originais, presentes no acervo Mário de Andrade, atualmente disponível no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Apenas cinco imagens publicadas na imprensa e não reunidas no livro ficaram de fora, por questões de contrato e pela precariedade do estado de conservação.
As obras foram criadas num momento em que o artista passava por fortes influências místicas e buscava unir crenças católicas e pagãs. De acordo com Simone, o misticismo foi o que levou Lima a se aventurar nas artes visuais.
Sua poesia sempre foi bastante imagética. No momento em que se tornou mais místico, na época de O tempo e a eternidade (livro em colaboração com Murilo Mendes de 1935), passou também a ter interesse por símbolos universais, com significados que a imagem traz imediatamente explica a curadora.
Inspiração em Max Ernst
A curadora diz que o artista sempre gostou de desenhar e pintar. Como começou a fazer sucesso muito cedo com o primeiro livro XIV Alexandrinos foi publicado em 1914, quando o artista tinha 21 anos Lima deixou as artes visuais de lado, mas retornou justamente quando se aproximou do misticismo. A motivação para fazer fotomontagens veio quando Lima conheceu A mulher cem cabeças, colagem surrealista de Max Ernst.
Lima sentiu muita identificação com o espírito romântico e lírico da obra, a possibilidade de falar a partir de uma visão de mundo fantasiosa e imaginativa.
A fotomontagem do poeta possui muitas semelhanças com métodos surrealistas. De acordo com a curadora, o coeficiente estético da obra depende da tensão entre absurdo e realidade. Como Ernst evidencia em uma definição do mecanismo da colagem presente em seu livro Écritures, de 1970, trata-se da exploração do encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não pertinente . Algo que não guarda semelhança a montagem dadaísta, por exemplo:
O dada era mais caótico, muito diferente, deixava muitos espaços em branco. Ernst e Lima trabalham com tela cheia, criam tensões entre elementos em primeiro plano e no fundo aponta Simone.
De acordo com a curadora, as explicações para o esquecimento do material provavelmente residem em seus próprios formato e período de lançamento.
A recepção inicial foi ambígua: ao mesmo tempo em que o trabalho era aclamado como mais uma das proezas de Jorge de Lima, outros diziam que era uma aberração. Setores da crítica o chamaram de imoral destaca ela. Foi lançado muito precocemente, a opinião pública não estava preparada.
A carreira literária de Lima também teria prejudicado seu lado de artista plástico:
Ele era um experimentalista na área de belas-artes, não tinha pretensão de ser reconhecido como artista visual, embora pintasse muito e esculpisse. Sua despretensão colaborou para a falta de reconhecimento depois assegura a curadora.
Embora o trabalho visual de Lima ainda seja pouco conhecido pelo público e a academia até aqui há apenas um livro publicado sobre o assunto, de Ana Maria Paulino a empreitada nas belas artes ajudou, por outro lado, seu lado escritor, já que, a partir da prática da fotomontagem, o poeta passou a entender melhor os processos de fragmentação e reconstrução de uma obra. Isso o ajudaria a escrever A invenção de Orfeu, de 1952, considerado seu melhor trabalho pela crítica.
Da mesma maneira que recortava detalhes de imagens existente para construir uma nova obra, A invenção de Orfeu é um jogo de espelhos refletindo diversos momentos da literatura universal destaca a a curadora. O livro está repleto de referências e citações a Virgílio, Dante, Shakespeare, Machado de Assis, entre outros.
Além das fotomontagens, a mostra inclui dois vídeos sobre a vida e a obra do artista, sendo um produzido exclusivamente para a ocasião, e um ateliê permanente que será montado para realização de oficinas de fotomontagens.