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Scorsese diz que seu novo longa explora clima de paranoia dos anos 50

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Carlos Helí de Almeida, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Dono de uma longa folha de serviços prestados ao cinema, Martin Scorsese pode ser considerado o maior cineasta americano em atividade. Mais do que um realizador de prestígio, querido pela crítica internacional e dono de um Oscar (por Os infiltrados, de 2006), o diretor nova-iorquino é um mestre nos conhecimentos da arte, acumulados desde os tempos de menino de saúde frágil, que passava o tempo enfurnado em cinemas ou assistindo a filmes na velha TV preto e branco da família. Aos 67 anos, o autor de clássicos modernos como Touro indomável (1980), continua testando a resistência dos limites dos gêneros e os medos de sua geração. Em Ilha do medo, novo thriller psicológico do cineasta ítalo-americano, ele revisita o clima de paranoia do início da Guerra Fria, nos anos 50.

Adaptação do livro de Dennis Lehane, o filme é protagonizado por Leonardo DiCaprio, um detetive que investiga o desaparecimento de uma detenta de um manicômio judicial. O ator tomou o lugar de Robert De Niro no papel de ator-fetiche de Scorsese. Abaixo, trechos da entrevista do diretor ao Jornal do Brasil durante o Festival de Berlim, onde Ilha do medo ganhou pré-estreia de luxo.

(Leia a crítica do filme na revista Programa)

Shutter Island', o livro

Confesso que não me empolguei muito com o livro de Denis Lahane ao começar a lê-lo pela primeira vez. Mas, quando cheguei ao final da história, me senti completamente comovido pelo destino de Teddy Daniels, o personagem principal, interpretado por Leonardo DiCaprio. Tanto que voltei a ler o livro de Lahane início ao fim e, claro, no final, já o via na cabeça como um filme totalmente diferente. Uma vez iniciado o processo de criar cenas a partir de trechos do texto, ele começou a tomar a forma de um labirinto muito interessante e com várias camadas, sejam elas percebidas como realidade ou não. Cada tomada do filme é dotada de extraordinária capacidade de vir a ser interpretada como uma camada diferente de realidade ou nenhuma. Era um desafio que me parecia muito interessante, uma das razões que me levaram a fazer o filme.

Lançamento adiado

O filme estava agendado para estrear no início do segundo semestre do ano passado. Terminamos de filmar Ilha do medo em julho de 2008, e deveríamos começar os trabalhos de montagem e finalização logo em seguida, mas ai veio a crise financeira, evidenciada em setembro daquele ano, e os estúdios envolvidos no projeto, particularmente a Paramount e a Viacom, disseram que ficaram sem dinheiro. E eles precisariam de muito dinheiro também para o lançamento do filme. É uma produção que demandava muitos recursos para ser feita, não importava quem estaria na equipe, e ela começou a sair do papel em um momento muito difícil para todos. Bom, foi isso que eles nos disseram, não posso adivinhar a real razão para o adiamento. O que posso garantir é que não houve qualquer conflito entre as partes, nenhuma queixa quanto à edição ou a duração final do filme.

Paranoia nuclear

Cada era tem sua paranoia. Nos anos 50, época em que o filme se passa, nosso maior temor era de um ataque nuclear. Eu tinha 8 anos em 1950, e os filmes americanos que comecei a assistir naquela época não via muitos filmes italianos ou britânicos até então eram sobre a Guerra Fria. Nós, crianças, tínhamos a nítida impressão de seríamos bombardeados a qualquer momento; a gente acordava todos os dias com essa ideia na cabeça. Imagine isso associado ao clima natural de sigilo e temor da região de Nova York em que eu vivia naquela época, dominada pelo crime organizado. Eu era uma criança muito impressionável, e aquilo me marcou muito, faz parte do que sou. O mundo, hoje, é ainda mais assustador do que naquele tempo, e mais misterioso até. A possibilidade de virmos a virar vítimas de um ataque terrorista é muito maior.

Temores irracionais

Todos os filmes que fiz lidam com algum tipo de medo pessoal, de uma forma ou de outra. Mas o medo faz parte da vida de qualquer pessoa. Cresci numa área muito dura de Nova York, onde havia uma concentração muito grande de imigrantes italianos, sicilianos e napolitanos, principalmente. Muita gente tinha problemas com o álcool, com a pobreza e o crime organizado. Ou seja, convivíamos com temores reais, mas muitos de nossos medos são de fundo irracional. A questão principal é como você lida com esses medos, não importando se irracionais ou não. Se você vive em um estado de temor constante, você acaba paralisado por ele, não se move e, portanto, não progride ou amadurece. Mas se você vive com o medo, ou seja, reconhece os perigos a sua volta, você aprende a conviver com ele, embora não goste da ideia, mas não se deixa paralisar por ele.

Filmes dos anos 40

Há muito dos filmes psicanalíticos dos anos 40 em Ilha do medo. Especialmente dos filmes de Jacques Tourneur e Fritz Lang do que dos outros diretores da época. Porque os filmes abertamente psicanalíticos daquele período eram muito simplistas, muito simplistas mesmo, quase como um livro infantil. Veja o exemplo de O sétimo véu (1945), de Compton Bennet. É um filme de que gosto muito, mas os protagonistas se comportam de maneira psicótica o filme inteiro, e todos tentam ajudá-los e, lá pelo final, entra um psicanalista na história que os hipnotiza e os cura, tudo acaba. Uau, porque não fizeram isso logo no início? Qual é, não faz sentido algum... (risos). Mas era uma característica da produção da época: fazia-se filmes populistas, por assim dizer, porque o grande público dos Estados Unidos ainda era muito rural, não conhecia o mundo da psicanálise. O preconceito contra a terapia durou até os anos 70.

De Niro x DiCaprio

Bob e Leo são de gerações diferentes e, portanto, pessoas bastante diferentes também. Leo foi criado em Los Angeles, Bob em Manhattan, na mesma região em que eu nasci e me criei. Então, ele sabe exatamente com que tipo de gente com que cresci; ele entendia o tipo de vida que eu vivia, daí uma identificação maior com ele. Ainda assim, é preciso lembrar que Bob vinha de uma família completamente diferente da minha. Ele nasceu em uma família intelectual e boêmia, o pai dele é um artista plástico fabuloso. Eu, por outro lado, nasci em uma família de operários, com nenhum tipo de educação formal; sem sequer o hábito de leitura em casa. Bob vem de um berço completamente distinto, mas foi adotado pelo estilo de vida do bairro onde eu vivia. Compartilhamos do mesmo contexto social, conhecíamos as mesmas pessoas e suas aspirações.