Daniel Schenker, Jornal do Brasil
RIO - Tania Brandão não se dedicou só a um trabalho de resgate da trajetória de Maria Della Costa, especialmente no que diz respeito aos anos em que manteve uma companhia de teatro ao lado de Sandro Polônio. Mais do que isto, em Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa, a autora parte da defesa de uma hipótese ousada, relacionada à injusta eleição de Vestido de noiva, a célebre montagem do grupo Os Comediantes, assinada por Ziembinski, em 1943, para o texto de Nelson Rodrigues, como marco do teatro moderno no Brasil. Injusta não porque questione a relevância do espetáculo, e sim porque a escolha de Vestido de noiva encobre, segundo ela, todo um processo de transformação da cena em vigor desde a década de 30. Um processo que se materializou na encenação do Teatro do Estudante do Brasil, conduzida por Itália Fausta, para Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em 1938.
Influência
A impressão incômoda que estava se consolidando com o passar do tempo era a de que o teatro moderno, no Brasil, fora iniciado por uma montagem de Os Comediantes e depois gravitara ao redor do Teatro Brasileiro de Comédia, o seu templo máximo , aponta Tania, nas primeiras páginas do livro. No decorrer de sua argumentação, evidencia não só que o grupo Os Comediantes foi influenciado pelo Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno, como a inexistência propriamente de um trabalho continuado, tal como se deu com o Teatro Popular de Arte, posteriormente rebatizado de Companhia Maria Della Costa.
Tania chama a atenção para o fato de o Teatro Brasileiro de Comédia, companhia fundada pelo industrial italiano Franco Zampari no mesmo ano de 1948 que o Teatro Popular de Arte, ter seguido um modelo de funcionamento proposto por Sandro Polônio ( possivelmente por influência de Itália Fausta : a alternância entre escolhas dramatúrgicas ousadas, no que se refere à construção de um repertório sólido, e outras que concediam ao gosto médio do espectador, na tentativa de viabilizar a saúde financeira da empresa.
Nesse sentido, Tania Brandão traz à tona uma noção de moderno contaminada pelas circunstâncias do real. Não há outra hipótese em jogo a não ser a opção decisiva de tornar o moderno comercialmente rentável (...). Tudo indica que Sandro Polônio foi o primeiro moderno e o de maior dimensão a construir um capital teatral, gerado e reinvestido na própria atividade produtiva, com raros apoios exteriores , observa Tania Brandão, ao destacar o momento em que Gianni Ratto, que havia dirigido montagens bem sucedidas de O canto da cotovia, de Jean Anouilh, e A moratória, de Jorge Andrade, se distancia do Teatro Popular de Arte e migra para o Teatro Brasileiro de Comédia. Ratto possivelmente não queria fazer concessões na escolha do repertório, fato que se repetiria anos depois no Teatro dos Sete.
Flavio Rangel também não aceitou adequar a encenação de Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, às necessidades do momento, mesmo que depois tenha se reconciliado com Sandro Polônio e capitaneado uma elogiadíssima montagem de Depois da queda, de Arthur Miller. Havia uma tensão acerca da oscilação do repertório dramatúrgico. Para Luiza Barreto Leite era complicado tentar conciliar o difícil sucesso artístico com o financeiro, popularidade com respeitabilidade , detecta Tania.
A autora recorre ao passado para melhor contextualizar as principais questões que nortearam o percurso do Teatro Popular de Arte /Companhia Maria Della Costa. Esta atmosfera, o teatro como arte, diretamente tributária de Silvio D'Amico, influeciada por Copeau, com diferentes nuanças, foi a referência central para a formação dos italianos que participaram ativamente da implantação do teatro brasileiro moderno Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi, Aldo Calvo, Flaminio Bollini Cerri, Luciano Salce, Alberto D'Aversa, Bassano Vaccarini, Túlio Costa , enumera. Jacobbi, conhecido pelo brilho intelectual, assinou uma versão de Mirandolina, de Goldoni; e Bollini foi o responsável por uma quase irrepreensível A alma boa de Se-Tsuan, de Bertolt Brecht, ambos na empresa de Sandro Polônio e Maria Della Costa.
Equilíbrio
Se na passagem do século 19 para o 20, Eleonora Duse louvou o texto do autor buscando colocar-se apenas como canal de transmissão da obra ainda que jamais tenha conseguido se limitar a isto, já que sua capacidade de doação camicase às personagens e o registro interpretativo filigranado sobressaíam diante do espectador no Teatro Popular de Arte estava em pauta um equilíbrio delicado entre o respeito ao autor e a assinatura do diretor. Em boa parte, a modernidade significou uma restauração do texto do autor, contra o texto do ator e seus recursos histriônicos, vistos a partir de então como apelativos. A idade moderna teatral é a idade da encenação, logo a idade do diretor. Houve uma dupla derrota do ator: a derrota diante da cena (diretor) e diante do texto (autor) , constata Tania Brandão.
No final de Uma empresa e seus segredos: Companhia Maria Della Costa, a autora parece apontar como o moderno se torna antiquado aos olhos da nova geração. A pá de cal sobre o teatro moderno foi lançada porque se passou a atacar, em escala crescente, em especial a partir dos setores jovens e de esquerda, o modo de encenação usado pelas grandes companhias, aliás, em extinção, e, em decorrência, a própria linguagem do teatro, um conjunto nebuloso visto como algo formal em demasia, grandiloquente, pesado aquilo que logo ficará sendo tachado de teatrão (...) Sumira a companhia, o conjunto, o elenco permanente; restara a estrela. Persistia ainda uma ideia vaga de projeto; na última página do programa (de O marido vai à caça, de Feydeau), o Teatro Popular de Arte anunciava os próximos cartazes previstos Jubiabá, de Jorge Amado, Alma negra, de Patrone Griff, Arturo Ui, de Brecht, Aquelas, de Eugenio Kusnet. Nenhum destes textos foi montado pela empresa, mas o gesto denuncia ainda centelhas do modo de fazer teatro que estava em xeque , observa.
Diante de todas as polêmicas, Maria Della Costa sobrevive como atriz moderna. Tania destaca como ela enfrentou o preconceito da beleza e sua evolução, nem sempre reconhecida, não deixando de se posicionar, de modo ocasionalmente contundente, até mesmo diante de críticos teatrais emblemáticos, como Decio de Almeida Prado, a quem, de qualquer forma, reconhece importância central na análise da cena moderna. Maria Della Costa sempre se notabilizou, em seus trabalhos como atriz, por sua capacidade de se transfigurar, se entregar à personagem vivida (...) Um ser de borracha, como se diz em teatro da disposição absoluta para a interpretação, o rosto pronto para ser moldado , analisa a autora, escorada por pesquisa extremamente rigorosa e inegável preocupação com a precisão das informações.