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O idioma secreto da noite

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Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil

RIO - No Prólogo de Três tristes tigres livro fundamental do século 20 que sai agora em nova tradução no Brasil o mestre de cerimônias do cabaré Tropicana manda ver sacudindo-se todo: In the marvelous production o f our Rodney the Great... Na grande, maravilhosa produção do nosso GRANDE Roderico Neyra!... Going to Brazil ... Intitulada, Me voy pal Brazil!... Taratará tarará, taratará tarará taratarô... Brazuil terra dye nostra felichidade... That was Brezill for you, ladies and gentlemen. That is, my very, very particular version of it! Brasil, damas e cavaleiros que me ouvem esta noite. Quer dizer, minha versão do Brazil de Carmen Miranda e de Joe Carioca. Mas... Brasil, público amável que lota este coliseu do prazer, da alegria e da felicidade! Brasil mais uma vez e sempre, o Brasil eterno, amável e digno público do nosso foro romano de canto, dança e de amor à meia-luz! .

Uau! Que país é esse?

É como se fosse um samba exaltação, à Ary Barroso. Não à toa Caetano Veloso, que no exílio londrino de fins dos anos 60 conheceu Guillermo Cabrera Infante e Três Tristes Tigres (cuja leitura em voz alta foi determinante na construção do filme Cinema falado), nota que aqui queríamos conhecer Cuba, e os cubanos a terra do coqueiro que dá coco troca de exotismos folclorizados e, depois, com a revolução de lá, politizados.

Cabrera Infante esteve no Brasil antes de escrever a sua obra-prima. Em 1959 fazia parte da entourage (tempos depois, ele preferia chamar de en toute rage) de Fidel Castro em sua primeira viagem como presidente pelos Estados Unidos, Canadá e América do Sul. Ouviu do barbudo, enquanto os dois sobrevoavam a floresta amazônica a bordo de um avião a hélice, que era ali, naquele mundo verde, que ele deveria ter feito a revolução. A ilha só não lhe bastava. Na época Guillermo Cabrera Infante ainda achava que era melhor ouvir isso do que ser surdo e deixou passar. Estava ansioso por encontrar o país ou melhor, a cidade de Voando para o Rio, o musical realizado pela RKO em 1933 a que assistira quando menino em seu povoado natal de Gibara.

Em 1988, quando voltou ao Rio, em busca outra vez das mulheres mais esplêndidas (mostravam tudo), mais audazes, heroínas do cinema e do século, que dançavam nas asas de aviões , decepcionou-se. A nostalgia fez-se neuralgia. O título do artigo que escreveu sobre a visita não deixa dúvida: Saindo voando do Rio . Para começar, chovia, com as nuvens encobrindo o Corcovado. Ao cinéfilo pareceu que estava na cidade de Blade Runner. Ao sair para comprar charutos brasileiros, pivetes tentaram lhe levar relógio, carteira, roupas e sapatos, no passeio de calçadas ondulantes da Avenida Atlântica. Duas vezes! A atriz Miriam Gómez, mulher do escritor, teve que defender sua bolsa a pontapés. Menos mal que, de madrugada, no ambiente art déco do Hotel Ouro Verde, o cubano pôde fumar seu puro devagar como deve ser, sem incômodos.

Por essas e outras curtiu mais Salvador. O resto de esplendor colonial da cidade lembrou-lhe Santiago que, como a Bahia, já foi capital de Cuba. Subindo e descendo ladeiras encantou-se com o motorista dublê de guia turístico chamado Lewis Carroll, quer dizer, Luis Carlos, mas na pronúncia baiana ouviu o nome do clérico de Oxford e autor de Alice no País das Maravilhas, grande influência literária que fica evidente em Três tristes tigres desde a epígrafe: E tentou imaginar como seria vista a luz de uma vela quando estivesse apagada .

Em São Paulo G. Cabrera Infante (às vezes assinava assim porque detestava o primeiro nome, Guillermo) trabalhou: entrevistas, tardes de autógrafos, palestras, debates, conferências, jantares de homenagem e ainda participou da 10ª Bienal do Livro da cidade. No Masp encontrou-se com Haroldo de Campos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, sobreviventes, como ele, da swinging London. Deixou Caetano amuado ao dizer que em matéria de cinema era um reacionário de esquerda , elegendo cineastas americanos entre os seus favoritos o velho mestre Samuel Fuller, Brian de Palma, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e ainda o inglês Ridley Scott de Blade Runner e Alien. (O que acharia de Cinema falado?)

Durante o bate-papo entregou a chave para a melhor maneira de ler TTT, embora, para um observador com o mínimo de perspicácia, a porta estivesse desde sempre aberta, escancarada, arrombada: A mim me interessam os fragmentos, desde Três tristes tigres já disse o Haroldo de Campos, muito bem, ele é um livro de fragmentos. Não se pode entender de outra maneira. Era efetivamente uma quantidade de fragmentos que unia o livro. Além disso, o escrevi dessa maneira. Ainda mais, eu pratico a leitura fragmentária. Leio muito poucos livros inteiros. Leio pedaços de livros . Você, leitor, sabendo disso, pode abrir TTT que Cabrera Infante sempre chamou de livro , e não de romance ou outra coisa em qualquer página. E em qualquer lugar. No metrô vai pegar bem. É um livro impressionante e impressionável.

A recente edição pela José Olympio tradução a cargo de Luís Carlos Cabral; a outra, em português do Brasil, é de Stella Leonardos, com o selo da Global, de 1980, esgotada incorpora como apêndice um texto famoso do autor, Cronologia a la manera de Laurence Sterne,,, o no , não se sabe por que colocado depois do Epílogo e intitulado na tradução Origens: uma cronologia chamada: o autor se apresenta (sic). Nela, lê-se na entrada para o ano de 1961, quando o escritor tinha 32 anos: Começa a escrever Ella cantava boleros, uma continuação de P.M. [um curta de free cinema que celebra a vida noturna de Havana realizado por Sabá Cabrera Infante, irmão de Guillermo, e pelo fotógrafo Orlando Jiméndez] por outros meios. Por acaso, a novelinha acaba virando TTT .

Grande parte da gestação do livro até o fim de 1961 tinha como título A noite é um buraco sem beira, horrível , segundo o próprio autor se deu em Bruxelas, na Bélgica, para onde Cabrera Infante foi mandado no ano seguinte por ter tido a audácia de criticar o sequestro e a censura ao documentário P.M. Ao menos não era a Sibéria: trabalhando como adido cultural, sobrava tempo para escrever e para começar a sentir saudade da velha Havana. No estrangeiro escreveu a continuação de Ella cantava boleros (evocação da cantora Fredesvinda Garcia Valdés, a Freddy Céspedes, mulata enorme e de voz cavernosa, que gravou apenas um disco inolvidável), o Prólogo , a primeira parte intitulada 'Os debutantes (onde meninas falam sacanagem embaixo de um caminhão e onde brilham a garota-propaganda oxigenada Minerva Eros e um Philip Marlowe havanês), A casa dos espelhos , os capítulos narrados por Bustrófedon (espécie de divindade que, como nunca escreveu nada, trata as palavras como desenhos e grafismos), as sessões psiquiátricas e, por pura sorte, entre os papéis trazidos de Cuba encontrou o texto da confissão da louca que forma o Epílogo .

Foi também em Bruxelas que escreveu a seção mais explosiva de TTT, as paródias de A morte de Trotsky narrada por vários escritores cubanos, anos depois ou antes . Cabrera Infante decidiu tornar-se escritor aos 18 anos depois de ler fragmentos de O senhor presidente, do guatemalteco Miguel Angel Asturas, e logo imitá-lo cometendo um conto que, para seu espanto, foi publicado na prestigiosa revista Bohemia. Estava pois à vontade Parodio no por odio para escrever à maneira dos gigantes cubanos José Marti, José Lezama Lima, Virgilio Piñera, Lydia Cabrera, Lino Novás Calvo, Alejo Carpentier, Nicolás Guillén sem baixar o nível, mas tirando-lhes um sarro. A ideia surgiu quando Cabrera recebeu pelo malote diplomático, no lugar dos intermináveis discursos de Fidel, um ensaio de Lezama no qual havia a seguinte frase: Sinto-me como um possesso penetrado por um machado suave . Daí extraiu literatura da literatura. Carpentier e Novás Calvo se aborreceram com a broma. Lydia ficou encantada. Não se soube a opinião de Lezama e Piñera.

Achando que havia terminado o livro que então se chamava Vista do amanhecer no trópico o escritor mandou o original para concorrer ao Prêmio Biblioteca Breve de 1964. Ganhou, com o voto decisivo de Mario Vargas Llosa. Mas Cabrera Infante, a essa altura brigado de vez com o governo castrista e impedido de voltar a Cuba, resolveu não publicá-lo. Retrabalhou-o ainda mais fazendo o que definiu como revisionismo antirrealista . Quando enfim saiu em 1966 foi com o título definitivo de Três tristes tigres.

Duas notas Notícia e Advertência preparam o leitor para o que vai encontrar pela frente. A primeira, mais convencional, esclarece que qualquer semelhança entre a literatura e a história é acidental . A segunda explica que o livro é escrito em cubano: (...) nos diversos dialetos do espanhol que são falados em Cuba, e a escrita não é mais do que uma tentativa de captar, como se diz, a voz humana em pleno voo. (...) No entanto, a pronúncia predominante é a dos habitantes de Havana e, em particular, a da gíria noturna que, como em todas as grandes cidades, tende a ser um idioma secreto. A reconstrução não foi fácil e é preferível ouvir algumas páginas em vez de lê-las. Não seria uma má ideia lê-las em voz alta .

Começa então o festival de prosa exibicionista, recheada de piruetas e dribles verbais, trocadalhos do carilho, trava-línguas, paródias, pastiches, paranomásias, palíndromos, quebra-cabeças semânticos, aliterações, assonâncias, colagens, silibação mutante, calembours, puns, em que, além de Lewis Carroll, aparece a influência de Petrônio, Laurence Sterne, Lichtenberg, Mark Twain, James Joyce, Raymond Queneau, Vladimir Nabokov. Louco por cinema, Guillermo Cabrera Infante era no fundo um amante escravizado da palavra. A coerência do relato muita vez que vá para o diabo que a carregue, pois não se perde a piada. Em vez do horror, o humor.

Basicamente são cinco os principais narradores que se multiplicam em múltiplas vozes: o fotógrafo Códac, o ator Arsenio Cué, o escritor Silvestre, o músico Eribó e o fantástico Bustrófedon. Quem era Bustrófedon? Quem foi quem será quem é Bustrófedon? B? Pensar nele é como pensar na galinha dos ovos de ouro, em uma charada sem resposta, na espiral. Ele era Bustrófedon para todos e tudo para Bustrófedon era ele. Não sei de onde caralho tirou a palavrinha ou o palavrão. A única coisa que sei é que ele me chamava muitas vezes de Bustrófoton ou Bustrófotomantôn ou Busnéforoniepce, depende, e, dependendo, Silvestre era Bustrofênix ou Bustrofeliz, Bustrófitzgerald .

E, já que nos aproximamos do fim, um lugar-comum não poderia faltar: o grande personagem do livro é Havana assim como o de Ulisses é Dublin. Não a Havana-ruína-caindo-aos-pedaços de hoje, destino de turistas brasileiros e europeus, mas a Havana dos anos pré-revolucionários, cheia de ritmo e fumaça nos cabarés, son e bolero, Beny More e Bola de Nieve, quintal dos EUA e feudo de Fulgencio Batista, um bordel a céu aberto batido pelas ondas no Malecón. Uma cidade que, quer queiram quer não, ainda existe. Nos livros de Guillermo Cabrera Infante, especialmente em TTT e Havana para um infante defunto. Nostalgia, esa puta del recuerdo , dizia ele.

Sejam bem-vindos ao túnel do tempo e do som.