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O Santo Inquérito: construção da culpa se perde nos recursos cênicos

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Macksen Luiz, Jornal do Brasil

RIO - Ainda que na origem esteja um fato histórico, a visitação da Inquisição ao Brasil, no século 18, O santo inquérito, de Dias Gomes, escrita em 1966, é um texto de circunstância, pelo menos em sua gênese. Alegoria dramática, com ilações evidentes ao momento político que se vivia, o fundo histórico servia como ponte temporal que aproximava posições críticas a efeitos mobilizadores. Entre a metáfora da ação repressora e o simbólico do ato de integridade, a personagem paraibana Branca Dias se transfigura numa Joana D'Arc nordestina, que arde na fogueira, vítima da intolerância e da permanência de ordenação que se autorregula por meios perversos.

O texto de Dias Gomes, em que pese esta configuração de época, resposta dramática a uma intenção política, demonstra que se sustenta para além de sua funcionalidade de origem. Em especial na primeira parte, em que são definidas as características de tempo e de ação, quando Branca se apresenta como a jovem temente ao pai e a Deus, e o padre confessor que associa impulsos às provações de sua fé. Ao se estabelecer o estatuto da culpa por faltas não cometidas, a narrativa ganha contornos mais dicotômicos, como se a construção da farsa para servir à manutenção de um poder usurpador da liberdade, precisasse ser conotado com tintas acentuadas.

O desenho de Branca se corporifica na perplexidade que se lhe acomete por aquilo que ultrapassa a sua compreensão. Por outro lado, o padre e o séquito de inquisidores se enfraquece pelo traço caricatural e ridículo que o autor empresta à sua liturgia. O confronto da jovem e o poder, que seria o da construção da culpabilidade, em que os métodos de mentira, manipulação e tortura sustentam a inflexibilidade do pensamento único, se esvai pelo excesso de intencionalidades, que se clarificariam melhor se fossem menos intensos os traços sublinhadores.

Mas o texto de Dias Gomes, apesar de todas as eventuais restrições que se lhe possam fazer, tem força expressiva, diálogo bem articulado e o que parecer ser o seu maior defeito, também é a sua melhor qualidade. A indignação. A montagem que está em cartaz na arena do Espaço Sesc apenas acentua as fraturas do texto e demonstra desordem cênica, que se equilibra como quebra-cabeças em que faltam peças.

Amir Haddad assina somente a supervisão, o que faz supor que o próprio elenco tenha se autodirigido, e desta maneira se conduzido até a atabalhoada costura final. Mesmo que Amir Haddad tenha sido tão-somente o supervisor, muitas das suas características de encenador aparecem de forma exponencial. A presença dos atores em cena, antes do início do es petáculo, com infindável cantoria, sem que isto contribua para a fixar qualquer ideia, se assemelha aos métodos de sensibilização que o diretor utiliza em seus projetos de teatro de rua. A trilha sonora, com músicas de Chico Buarque e canto gregoriano, é uma forma a mais de sublinhar aquilo que já por si se evidencia. O uso de bandeiras, que circundam a arena e que são agitadas pelos atores, se mostra como mais uma característica de uma certa carnavalização que, se imagina, pretenda quebrar solenidades. Recurso derivativo, como tantos outros que são utilizados nesta versão de O santo inquérito, que patina, deslocada, na tentativa de se inserir na atualidade.

O elenco, bastante irregular, como a totalidade da montagem, tem em Arnaldo Marques e Daniel Barcelos figuras caricaturais, que diminuem dramaticamente os personagens. Gustavo Arthiddoro mantém interpretação modestamente discreta. Jitman Vibranovski não sustenta o pai em quaisquer das suas intervenções. Karan Machado se revela mais convincente antes da cena da tortura. Cláudio Mendes se apoia na fraqueza do padre confessor com alguma veracidade. Marianna Mac Niven é quem melhor se sai no elenco. Capaz de transmitir a ingenuidade, frescor, tensão e fortaleza de Branca, a atriz constroi, sem desvios e suavemente, a trajetória da personagem até a fogueira.