Macksen Luiz, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - É um encontro. Tão fortuito quanto podem ser encontros numa zona escura e decadente da cidade, em que figuras sombrias estão dispostas num cenário mal iluminado, oferecendo aquilo que, não se sabe ou não se quer saber, comprar. Qualquer gesto (basta um olhar), nestas circunstâncias, adquire a dimensão da incapacidade de compreender o imponderável do relacionamento humano. O outro é a extensão de si mesmo, objeto de troca de algo que está à venda, mas que se materializa em linguagem. As palavras nada mais são do que a representação de significados aos quais se emprestam sentimentos que não deixam que se saiba exatamente a sua natureza. O encontro, ponto de partida, é também ponto de chegada. Tudo permanece o mesmo, sempre mudanças. O roçar de emoções na vertigem de uma noite de interioridades é exercício da marginalidade dos desejos, no qual o comércio entre dois homens se faz com a mercadoria de suas existências, moeda corrente que nunca conclui as compras e que simula o troco com notas falsas.
Na solidão dos campos campos de algodão, em cartaz no Centro Cultural dos Correios, é um exemplar marcante da obra dramática do francês Bernard-Marie Koltès, autor de poucos, mas instigantes textos, que morreu com apenas 41 anos. Da sua curta produção teatral, Na solidão dos campos de algodão cristaliza a sua perspectiva autoral, na manutenção da tradição literária da cena francesa, com o uso do dramático como pretexto, não para sugerir ação, e sim para evidenciar o que encobra a falta de ação. Os dois personagens na solidão de um campo urbano, estariam vendendo seus corpos, ou alguma droga pesada? A ânsia de mercar algo interdito, nada tem a ver com moralidades ou ordenamentos, mas com a volatividade que cada um traz em si para este comércio de circunstância. Escambo momentâneo de duas vidas de passagem por um beco escuro ou por um depósito abandonado de almas solitárias. Não há passado que explique e justifique o instante. O diálogo entre esses desgarrados se estabelece pela instabilidade das suas pulsações, ao se jogarem em disputa verbal incontornável. Como observou Patrice Chéreau, o primeiro diretor do texto de Kòltes, os personagens são construídos e desenvolvidas inteiramente a partir da linguagem , que os fazem fluídos, incapazes de serem compreendidos por um sentido único. Nos oferecem pistas, que desfazem a seguir, permitindo, no entanto, que se construa fluxo de palavras-imagens de uma corrente nervosa.
Na montagem de Caco Ciocler, a ambientação de Bia Junqueira é decisiva na força e envolvência na encenação da palavra instável. Com contêineres demarcando o espaço ao ar livre, e imensas gangorras no centro do palco , Bia criou mais do que cenografia, mas intervenção poderosa que aponta para o cerne do texto. Os movimentos de suspensão e queda provocados pelos atores nos extremos das gangorras, determinam ritmo, impacto e integração completa com a atuação da dupla de atores. A iluminação de Rodrigo Portella acentua o geometrismo e os ângulos do cenário, com firmes efeitos. O figurino de Amanda Carvalho situa bem os personagens, em especial no misterioso capote, com medalhas e pequenos adereços de um dos homens. A trilha sonora de Felipe Grytz precisava de ajustes na noite da estreia. Com esta visualidade impositiva e vigorosa, Ciocler soube conjugar o que poderia ser somente arcabouço estético ao vigoroso intimismo do confronto. O espaço é o ringue oscilante do embate verbal, onde o diretor encontra a real expressão da cena. As tensões interpretativas e espaciais se criam como unidade, com os atores apoiados em bases físicas para projetar o desequilíbrio da inconcretude das palavras. Armando Babaioff e Gustavo Vaz mergulham com empenho físico a esta torrente de consciência que explora escaminhos. O sobe e desce de sensações, vagos sentimentos que se afogam em discurso, é projetado pelos atores como turbilhão de impressões moldadas em escalada verbal. O aparente formalismo exterior, tão bem manipulado pela direção, complementa a sensibilidade atritante das interpretações de Armando Babaioff e Gustavo Vaz, que explodem com arrebatamento e competência o enquadramento poético.