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A poeta Dora Ribeiro lança 'a teoria do jardim'

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Marcos Pasche, Jornal do Brasil

RIO - Existem duas maneiras, sempre discutíveis, de classificar um livro como simples: a primeira é estabelecida pela crítica, que, tomando como parâmetro a linhagem tradicional do que se convencionou chamar de grande literatura, forma a classificação a partir de dois aspectos: a insuficiência da obra quanto à observação e à estetização dos vendavais humanos, e a falta de originalidade da mesma obra ao tratar de um determinado assunto; a segunda maneira parte do próprio autor cansado ou tímido diante da aura solene atribuída à arte ao escrever conscientemente de forma despretensiosa (lembre Manuel Bandeira), esculpindo seu escrito com matéria comum, catada, dia a dia, na rua do dia a dia.

Talvez seja essa a primeira impressão, de singeleza conscienciosa, que se tem de a teoria do jardim, da poetisa mato-grossense Dora Ribeiro. A começar pela magreza física de suas 90 páginas (nada incomum para um livro de poemas), tudo no livro inspira simplicidade: a inexistência de títulos na maioria dos textos, a ausência total de letras maiúsculas, a vontade de falar em tom suavemente informal para camila, minha flor de jabuticaba , registra a dedicatória e de se integrar às miudezas da vida: sejam bem-vindas / todas as / coisas minúsculas / e desprezíveis .

Tal integração é uma tônica constante do livro, e isso torna sua simplicidade um fator de grandeza (lembre Manuel Bandeira novamente), pois as pequenices do jardim de Dora são, no fundo e no solo, instrumentos para resistir ao negativo paradoxo de nosso tempo, quando se faz imperativa a hipérbole (do barulho, da imagem, da propaganda e dos músculos) ao mesmo passo em que se põe tudo sob o jugo da efemeridade: tudo o que me transforma / em caldo / faz com que o redemoinho / da vida não me desconstrua . Dentro do turbilhão, a voz dissonante identifica sua desarmonia no universo que nos quer soldados da ganância, apesar de seu discurso democrático: esta cidade dita flexível / é na verdade uma armadilha / para quem como eu / deseja apenas os seus / pormenores .

A ânsia pelo sucesso a fazer com que se vejam como únicas fontes de felicidade a fama, o dinheiro, a aprovação em concurso público e a carreira bem-sucedida (hoje muitos donos de barracas de cachorro-quente gostam de encher a boca para se identificarem como empresários) também é desmerecida por essa poética que, a exemplo das plantas, colhe no estrume da vida contemporânea algumas de suas proteínas. E nesse exercício, a autora, no canto do seu quintal, mostra aos poetas ser possível realizar transgressões substantivas em meio ao vale-tudo da pós-modernidade, como nesta belíssima (anti?)ode: um dia escreverei uma / ode aos perdedores / para agradecer todos os / fracassos / pequenos e grandes / que se transformaram / no tecido / da minha vida / confundindo-me / deliciosamente // os fracassos são / uma religião perfeita / amiga do tempo humano .

Se a flor de Drummond nasceu na rua, furando o asfalto e o tédio, a poesia de Dora Ribeiro, cujas pétalas se espalham pelas páginas de a teoria do jardim, fura, ironicamente, o terreno poético brasileiro desmatado pela excessiva teorização do verso. Há entre os poetas hodiernos certo esquecimento de que a arte aprofunda-se também por fazer vibrar a sensibilidade do espectador, e o livro simples da poetisa mato-grossense, conduzido pelo desprendimento, tonifica seu brilho na medida em que solta folhas ao sabor do vento domingo vou lavar as mãos / e os pés / e secar tudo com beijos de amanhã para cantar, sem qualquer constrangimento, o amor, seja em estado de epifania quero falar uma língua nova / principiada na carta do teu / corpo seja na doçura do cotidiano: e o beijo que / começou numa garagem e terminou / no jardim das amoreiras .

Por ter aleijado tanto a natureza, o homem começa a sentir na pele as consequências da ideia de que tudo está a seu serviço. Mesmo aleijado socialmente, o poeta ainda nos aponta caminhos a serem seguidos, outros a serem abandonados, e outros tantos a serem criados. Dessa maneira, a simplicidade de Dora Ribeiro (que, íntima da terra, diz: sei o que é ser acolhida / nessa generosidade verde ) deveria ser levada e lida à seriedade das cúpulas dos países industrializados, para que ela, menina com terra nos pés, dissesse: toda a delicadeza é pouca / para fugir ao precipício / e organizar a ignorância // por isso sonhei que / construíamos um jardim / de muitos verdes e colares / de azul . Ela seria detida em nome da ordem e do progresso, mas faria com que dissessem, em tom inconformado, que há agora um jardim no meio do caminho