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Max Bense reflete sobre a arte brasileira

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Evando Nascimento, JB Online

RIO - O livro Inteligência brasileira: uma reflexão cartesiana, de Max Bense (1908-1990) tem despertado um vivo interesse desde que foi lançado, fazendo-se acompanhar de certa polêmica. Trata-se de um volume precioso para se refletir sobre as complexas relações entre a inteligência culta nacional e um pensador europeu.

Como se trata de autor que teorizou e ajudou a desenvolver uma das vertentes mais poderosas da vanguarda internacional, a construtivista, seria fácil tomar partido, atacando ou louvando suas reflexões, que se querem cartesianas , adjetivo inscrito no subtítulo e desdobrado amplamente na argumentação. No entanto, o novo milênio trouxe o distanciamento fundamental para melhor compreender o riquíssimo e belicoso legado das vanguardas, em todas as suas frentes de atuação: artes plásticas, arquitetura, literatura, design, cinema etc.

Max Bense foi um pensador de ampla formação, transitando da filosofia para a teoria informacional, de base semiótica, e abrindo vasos comunicantes entre as diversas modalidades de intervenção cultural, tanto teóricas quanto práticas. Isso leva a que suas relações com a intelectualidade brasileira se revistam de várias camadas de sentido e valor. Fortalece essa multivisão o fato de ele ter estabelecido contato não apenas com representantes da ala construtivista, mas também com autores alheios a isso, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Viajante culto

Não seria a primeira vez que um viajante culto deixaria traços de sua passagem entre nós, mas raro é o caso de ter a preocupação de consignar num volume densamente reflexivo, nem por esse motivo desprovido de certa emoção pelo reconhecimento de pares mas também (desde a Nota preliminar ) de grandes disparidades nestes trópicos. A edição como sempre extremamente bem cuidada da Cosac Naify, incluindo boa iconografia e uma epígrafe de Guimarães Rosa, apenas reforça a necessidade de compreender o gesto dadivoso e complexo de Bense.

Surpreendentemente, o texto começa com uma série de frases livremente associativas, em que se percebe a aproximação de um europeu em relação às terras brasílicas. O estilo é refinadamente poético, sem o esperado peso excessivo do racionalismo; ao contrário, colhe-se logo a seguinte observação, num parágrafo que se fecha com a citação de um poema de Stefan George: Acaba-se a confusão entre sentimento e raciocínio, favorecendo-se ambas as coisas .

Bense incorre em diversos momentos no esquematismo que seu texto no princípio exorciza. Assim, o pequeno e denso manifesto se converte em grande parte num louvor à utopia brasiliense, algo compreensível, já que visitou a cidade pela primeira vez logo após a inauguração, em 1961. São configurados opositivamente dois modelos de cidade: um orgânico (representado pelo Rio) e outro planejado (representado por Brasília). Eis como o autor sintetiza o binarismo arquitetônico: De fato, Rio e Brasília encarnam duas ideias de fundação de uma cidade: a cidade como prolongamento da natureza habitável e a cidade como prolongamento da inteligência emancipada .

Quatro décadas depois, refletindo-se sobre o que aconteceu com as duas cidades, percebe-se que o equívoco esteve e está nessa segregação entre os protótipos. O excesso de planejamento não impediu que a capital federal tivesse seu plano original desfigurado por uma outra cidade, viva e orgânica, para lamento de seus genitores . Em contrapartida, a falta de planejamento urbano no Rio engendrou o caos urbano, que a atual gestão tenta minimamente organizar.

A solução evidentemente estaria, como defende apaixonadamente Marshall Berman, numa combinação entre organicidade e planejamento, improvisação e cálculo. Faltou ao plano piloto a criação dos espaços de convivência e proximidade, visto estar calcado no modelo autoritário do construtivismo ortodoxo do século 20, hoje em vias de forte abalo e desconstrução. Separada do resto do país e da população, como o próprio Bense reconhece, Brasília depende do avião, para o contato externo, e do carro, para a circulação interna. Tornou-se o centro de um poder excessivamente autônomo, cujo distanciamento da população engendrou o monstro burocrático e corrompido que ora presenciamos.

Diálogos locais

É essa perigosa monumentalidade que Bense ainda não tem condições de (auto)criticar, imerso que está nesse movimento de reconfiguração mundial dos espaços urbanos: Silenciosamente, de costas para a pobreza . Os momentos mais belos do livro são aqueles em que dialoga com artistas locais. Nesse sentido, chega a transcrever uma famosa crônica de Clarice, em que ela mostra todo seu temor diante da esfinge brasiliense. Seus comentários sobre Meu tio, o Iauraretê e Grande sertão: veredas, de Rosa, são de tocante sensibilidade artística, mostrando o quanto um certo estilo tropical também o fascina.

Mas sem dúvida sua interlocução mais forte acontece com os construtivistas e em particular com o grupo da poesia concreta, especialmente os irmãos Campos, Décio Pignatari e José Lino Grünewald, com os quais estabelece grande intercâmbio, organizando exposições na Alemanha e tendo, em contrapartida, seus textos e ideias divulgados no Brasil. A poesia concreta é portanto poesia consciente, que comunica inteiramente a sua realidade estética numa linguagem de signos cujas categorias ela combina, e esses signos são palavras, mas a palavra não aparece como um portador convencional de significado, ela tem de ser compreendida estritamente como portador construtivo, visual ou vocal da forma . Esse é o tipo de apreciação até hoje válida acerca da importante produção concretista.

Entre as páginas mais sofisticadamente analíticas do livro estão os comentários sobre as esculturas de Bruno Giorgi (a quem dedica o livro, junto com Aloísio Magalhães e Wladmir Murtinho), os quadros de Alfredo Volpi e os trabalhos inovadores de Lygia Clark, artistas expostos na Studiengalerie da Universidade de Stuttgart, onde Bense era catedrático. Nos bichos de Lygia, ele percebe a plena convergência entre objetos construtivos e não construtivos, pois suas obras vinculam a estabilidade variável de um portador material a uma fragilidade variável da mensagem estética . Eis, com todas as suas letras, a saída para a rigidez do hiperracionalismo construtivo, mostrando como a reflexão de Bense não se limitou a uma proposta dogmática. Por tudo isso, o volume prova que, sim, é possível pensar e fazer arte nos trópicos, com e além de Descartes.

Inteligência brasileira:

uma reflexão cartesiana

Max Bense. Trad: Tércio Redondo.

CosacNaify. 120 págs. R$ 39