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Em 'A perda da imagem', Handke mostra terra sem ideias nem ideais

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Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil

RIO - Ela está guiando. A poeira levanta. O sol está batendo direto no seu rosto. Ela nem pisca. Pode ser que logo esteja morta. Ela está usando um anel. Seu cinto é mais largo. Mais larga ainda é sua boca. Faço carinho nela. Ela nem percebe. Será que ela é um homem? Um lírio branco se abre em seu coração. Suas costelas são pontudas como faca. Você fede. Ela gira o volante. A estrada é reta. Há uma caveira na beira da estrada.

Na sóbria mesa de trabalho, instalada embaixo de velhos castanheiros na casa de Chaville, arredores de Paris, um sexagenário trabalha, ao ar livre, muitas vezes não fazendo caso das baixas temperaturas. Como de costume, escreve à mão, em cadernos espirais, trechos como este aí de cima.

Ao contrário do exemplo, escolhido pela força descritiva, ele prefere as frases longas, propiciado pela língua alemã, em suas complexas possibilidades de estratificação e encaixamentos sintáticos , como explica Simone Homem de Mello, tradutora do romance A perda da imagem ou Através da Sierra de Gredos, de Peter Handke, recente lançamento da Estação Liberdade.

Em suas quase 600 páginas na versão em português, A perda da imagem conta a tradutora no posfácio foi um livro manuscrito, como todos os anteriores publicados pelo autor nas últimas duas décadas. A caligrafia regular grava, a lápis, as folhas de sulfite A4, sulcando forte o papel, em relevo quase, ondulando as folhas, como se o manuscrito tivesse ficado exposto ao ar livre, talvez esquecido no sereno ou salvo por um triz de uma chuva repentina . É um enigma garante Simone Homem de Mello que não haja correções, a escrita a se estender em fluxo por linhas e linhas, pronta para ser impressa.

E lida, também, num fluxo, não obstante a prosa opaca, de humor gélido. A corrente vem em blocos, parágrafos sólidos. Quase não há diálogos.

Ao longo da cumeada de quase 200 quilômetros da Sierra dos Gredos, do maciço leste até o oeste, passando pelo central, especialmente alto, com certeza (ou 'sem dúvida alguma', como dizia uma das expressões correntes na época de nossa história), toda a cordilheira estaria coberta de neve até as altos vales e sem dúvida alguma ficaria assim até a primavera. O sol de janeiro, tão constante nas semanas anteriores, se ocultava e desaparecia por trás da escura frente de nuvens vinda do oeste com toda rapidez, reforçando ainda mais aquele impulso indomável dela, seu impulso de antes, de agora, de novo.

A história se passa numa época indefinida e avançada do século 21. Um pouco além da nossa, moderadamente futurista, em que já se realizou a primeira viagem tripulada a Marte, a cidade de Belgrado está sob o jugo dos turcos, na Espanha aboliu-se o signo gráfico das frases interrogativas e quase tudo é um evento .

Nesses tempos interessantes, uma mulher poderosa, jovem executiva de um império financeiro que este resenhista, vá lá saber por quê, imagina com o rosto da atriz Rachel Weisz deixa sua casa numa cidade portuária do noroeste europeu (ela não quer que ninguém descubra o nome do lugar) e pega um avião (são moderníssimos e rapidíssimos) com destino a Valladolid. Dali se dirige à região da Mancha, aquela mesma de cujo nome certo alguém não queria lembrar-se e onde vivia um fidalgo dos de lança em lanceiro, adarga antiga, rocim magro e cão corredor.

E então quer dizer que aquele traste, esse mau soldado escravo e escravo de galés, este maneta, filho de um charlatão, seria mais uma vez o homem certo para sua história, o único? Mas esse Cervantes sabidamente nunca chegara a narrar uma aventura predominantemente interior como a dela? Ou será que sim? Suas histórias de aventura, assim como a da perda-da-imagem-e-de-como-administrar-tal-situação, também se passavam sobretudo no mundo interior, sendo justamente por isso tão universais?

A mulher ( la señora de la historia ) segue a pé a Sierra dos Gredos e encontra um povoado imaginário, cujos habitantes experimentam uma vida com perda total de imagens, ideias, ideais, ritos, sonhos e leis. Lá vive um escritor recluso, outrora famoso, que ela contratou para escrever sua biografia e vai acabar fazendo o velho jogo do romance dentro do romance. É fácil imaginar este escritor com cara de Fumanchu que acaba de acordar é Peter Handke esculpido em Carrara.

O idiota marchando pelo meio da rua, como sempre, com passos militares e braços balançando, como se fosse cidadão honorífico, andando e andando prosseguiu seu trajeto com toda soberania, apesar do puxão que levara dela, mostrando ao mundo seu perfil de César, como numa moeda. Só que, nesta investida, voltou-se para ela, virando-lhe a cabeça esférica e calva (o rosto redondo afundado entre os ombros) e soltando-lhe aos berros um de seus oráculos, geralmente ignorados por todos, inclusive por ela, com os lábios lambuzados de preto, como se fosse de carvão: 'Ablaha! Isso significa: idiota! Às outras mulheres, a nata do sexo; a você, a mancha do polvo! Polvo na serra! A loucura é meu dinheiro. E a sua, qual é? ' (O autor, comentando: 'Ablaha um bom nome para você. Eu poderia chamá-la assim uma vez ou outra, na sua, na minha história') .

Nascido em 6 de dezembro de 1942, em Griffen, Áustria, filho de mãe eslovena, Peter Handke publicou mais de 40 obras e é um dos mais conhecidos e polêmicos escritores de língua alemã na atualidade.

Chamou a atenção logo com seu primeiro livro, Die Hornissen (Os vespões), de 1963. Na época, ele acusava os autores contemporâneos de impotência para a descrição . Seu negócio era provocar, o que deixou evidente com a encenação de duas peças: Kasper e Insulto ao público.

Entre 1971 e 1987, Handke viveu uma lua-de-mel com o cineasta Wim Wenders, dela resultando três filmes em parceria: O medo do goleiro diante do pênalti (1971), Movimento em falso (1974) e o mais conhecido As asas do desejo (1987). A primeira é uma adaptação sem tirar nem pôr da novela homônima, publicada entre nós pela editora Brasiliense, que pouco tem a ver com futebol: trata-se de um quase livro policial um tanto esquizofrênico, é verdade. Barrado do time, um goleiro decide estrangular uma bilheteira de cinema com quem passara a noite. A mulher canhota, também editado pela Brasiliense, foi transporto para a tela pelo próprio autor.

Nos anos 80, a Rocco lançou três de suas novelas curtas: A ausência, A repetição e A tarde de um escritor. Nesta, mescla de ensaio, há uma cena memorável, que faz a delícia do poeta Carlito Azevedo que, ao encontrar um exemplar do livro em suas andanças pelos sebos cariocas, sempre o abre à página 33 ( diga 33, Carlito ). É nela que se conta a agonia de um escritor não o do título, outro que, deitado na cama de um hospital, só se preocupa em saber se os suplementos literários falaram dele naquela semana.

Em 2008, quando completou 65 anos, Handke ameaçou abandonar a literatura, por considerar já ter tido tudo o que queria dizer na vida. No mesmo ano pediu a retirada de seu romance Die moravische Nacht da lista de concorrentes ao Deutscher Buchpreis, principal prêmio alemão. Em 2006 já recusara outro prêmio, o Heinrich Heine. Se ganhar o Nobel, é bem capaz de desdenhá-lo da mesma forma. Parece, a cada dia, aumentar nele o desejo de ficar só. Uma Greta Garbo.

Principalmente depois de ter sofrido ruidosa caça às bruxas motivada por seu apoio aos sérvios durante a Guerra dos Bálcãs e por suas simpatias a Slobodan Milosevic compareceu até ao enterro do ditador. Em sua defesa, pronunciaram-se alguns intelectuais entre eles, a Prêmio Nobel austríaca Elfriede Jelinek, excelente escritora ainda inédita no Brasil, o cineasta Emir Kusturika e ex-parceiro Wim Wenders que viram nas ações de Handke um gesto humanitário.

As críticas do escritor dirigiam-se ao tipo de cobertura jornalística realizado durante o conflito na ex-Iugoslávia, que para ele não foi ponderada nem equânime, e sim baseada no politicamente correto. É um tema abordado no livro A perda da imagem, em que discute o poder dos meios de comunicação que moldam grupos humanos uniformes e geram imagens sem conteúdo.

Tudo bem típico de Handke: uma narrativa deambulatória, um narrador preocupado com conflitos subliminares, o retrato de um mundo contemporâneo isolado e com medo. Com o detalhe a mais da emulação cervantina, que se encaixa à perfeição na história da banqueira e do escritor recluso. Publicado em 2002, mostra o Fumanchu em plena forma.

A edição da Estação Liberdade é tão bem cuidada como a de Don Juan (narrado por ele mesmo), outro romance de Handke, lançado em 2007. A casa acaba de negociar os direitos de tradução de Die Morawische Nacht. Antes, pretende publicar a trilogia formada por Ensaio sobre a lassidão, Ensaio sobre a jukebox e Ensaio sobre o dia feliz.

Em A perda da imagem, particularmente oportuno é o posfácio da tradutora Simone Homem de Mello, que chegou a conversar com o autor em 2004. Ficamos sabendo, entre outras coisas, que Handke é leitor de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.