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Em centenário, livro reúne vida e obra do sambista Ataulfo Alves

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ALVARO COSTA E SILVA, Jornal do Brasil

RIO - Aos 18 anos, ele não via a hora de picar a mula e deixar Miraí, a cidadezinha na Zona da Mata de Minas Gerais. A chance veio pelas mãos de um médico recém-formado, que decidiu abrir um consultório na então capital do país e o convidou a trabalhar com ele. O rapazote, que sempre sonhara com o Rio, arrumou uma passagem de trem e quatro mil-réis, e só não viajou imediatamente porque já apresentava notável vocação para a elegância. Juntou mais dinheiro, para comprar morim e brim cáqui, dos quais a madrinha dele, costureira, fez um terno e duas camisas. Só então partiu. Cheguei ao Rio liso como bambu , costumava contar o compositor Ataulfo Alves.

E trabalhou como um bambu se é que bambu trabalha. Além de dar expediente no consultório da Rua da Assembléia, no Centro, à noite continuava o batente na casa do médico, na Avenida Paulo de Frontin, no Rio Comprido: varria os cômodos e o quintal, fazia compras, só parava quando o patrão ia dormir.

Anos depois, ao compor o samba Meus tempos de criança um dos mais sentimentais da história da música brasileira e que pôs a cidade de Miraí no mapa Ataulfo deve ter se lembrado dessa fase de dureza: Eu igual a toda meninada/ Tanta travessura que eu fazia/ Jogo de botão pela calçada/ Eu era feliz e não sabia .

Assim que pôde, ele deixou aquele emprego e foi ser caixeiro no armazém Flor do Rio Comprido (atendia no balcão e levava as compras na casa das freguesas). Arranjou um quarto para morar nas proximidades do Largo do Estácio. Como escreve Sérgio Cabral no livro Ataulfo Alves: vida e obra lançado para lembrar os 100 anos de nascimento do compositor, e com noite de autógrafos segunda, às 19h, na Travessa de Ipanema Ataulfo nem pensava nisso, mas para um candidato a compositor de samba morar no bairro do Estácio de Sá, nos últimos anos da década de 20, era viver o momento certo no local exato do nascimento do gênero musical que passou a ser denominado de samba carioca .

De fato, era o lugar que importava. E, se possível, no meio, junto e misturado à chamada turma do Estácio, da qual fizeram parte, além de Ismael Silva e Nílton Bastos seus maiores representantes Osvaldo Caetano Vasques, o Baiaco; Sílvio Fernandes, o Brancura; Rubem de Maia Barcellos, o Mano Rubem; Edgar Marcelino dos Passos, o Mano Edgar; Alcebíades Barcellos, o Bidê; Armando Marçal; Juvenal Lopes, o Nonel do Estácio ou Juju das Candongas; Aurélio Gomnes, o Mano Aurélio; e até o flautista Benedito Lacerda, em início de carreira. Mano, como muitos são chamados, era uma forma de distinção usada na época que atravessou os tempos e chegou à tribo do rap.

Essa geração de grande talento quase todos mulatos ou negros, na flor de seus 20 anos, muitos sem ocupação certa, com tempo para ficar dando sopa nos dois principais botequins do bairro, o Café do Compadre, no número 26 da Rua Santos Rodrigues, e o Apolo, perto do Largo do Estácio criou uma nova forma de fazer samba, diferente da de Sinhô, e daqueles que se ouviam na casa de Tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna, perto da Praça Onze. O estilo inovador, que afastou de vez a influência do maxixe e do samba-de-roda baiano, mantém-se, em linhas gerais, até hoje. A ruptura foi notável, e sem volta.

Da noite para o dia, apareceram sambas com notas mais longas, a estrutura melódica desenhada, de sutil maciez , na definição de Vinicius de Moraes, e, ao mesmo tempo, de ritmo mais pulsante, devido ao acompanhamento com instrumentos de percussão.

Não se pode esquecer que essa mesma turma fundou um bloco, num terreno da Rua Estácio de Sá, esquina de Rua Maia Lacerda, chamado Deixa Falar, que é considerado a primeira escola de samba da história.

Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, o compositor Waldomiro José da Rocha, o Babau da Mangueira, definiu, de maneira concisa e certeira, o que fizeram Ismael & Cia.: Era samba de sambar .

Era a escola de Ataulfo. A qual, sem a sua contribuição, não seria a mesma. Além dos sucessos, tanto de meio de ano quanto de Carnaval Ai, que saudades da Amélia, Atire a primeira pedra, Leva meu samba, Mulata assanhada, O bonde de São Januário, Oh! Seu Oscar, Pois é, entre outros criou um estilo, ao se apresentar como intérprete com o famoso grupo de pastoras. E que pastoras não à-toa, o grande sonho da cronista Elsie Lessa era ser uma delas.

Numa das primeiras vezes em que Ataulfo Alves apareceu no Café Nice da Avenida Rio Branco na década de 30, consagrado como o local preferido do pessoal da música ganhou logo um apelido. Só estar ali sentado, ao lado dos grandes, já era sinal de prestígio apelido então nem se fala. Urubu Malandro foi como o chamou o jornalista e letrista Orestes Barbosa, um dos donos do pedaço. O mesmo Orestes o abordou certa vez: De onde você é? . De Minas . Mineiro não dá pra samba . Ary Barroso, que estava próximo, não gostou: Eu sou mineiro, Orestes . Mas você é um aborto da natureza , brincou o jornalista.

O fato é que, em seu livro Sambeabá: o samba que não se aprende na escola, ao fazer a lista dos cinco maiores compositores da história samba, Nei Lopes apontou Sinhô, Ismael Silva, Noel Rosa, Ary Barroso e Ataulfo Alves. Se você, por conta própria e sem favor, incluísse no rol o nome de Geraldo Pereira, que nasceu em Juiz de Fora, estava encerrada a velha discussão a respeito das origens baianas ou cariocas do samba. Ele é mineiro, uai!

Mas Ataulfo, mineiramente, não ia propagar a descoberta. Tinha bem mais o que fazer. Contratado pela Rádio Nacional, presença obrigatória em programas de televisão e nas casas noturnas mais chiques do Rio e São Paulo, reconhecido pela elegância e educação, ele representou a antítese do sambista morto de fome e explorado, triste figura que, nos anos 60, tanto seduziu setores da esquerda que lotavam o Zicartola para ver o próprio Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e Ismael Silva, entre outros.

Ataulfo que hoje não é tão lembrado, numa injustiça gritante não fazia mesmo o tipo miserável: era apaixonado por automóveis e teve até um Cadillac; tinha três apartamentos: na Rua da Lapa, na Rua do Russel, na Glória, e na Rua Souza Franco, em Vila Isabel, além de uma casa na bairro do Encantado; frequentava os eruditos almoços dominicais nas casas dos escritores Álvaro Moreyra, em Copacabana, e Aníbal Machado, em Ipanema; volta e meia era fotografado ao lado de Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitschek.

Em 1961, o colunista social Ibrahim Sued, de O Globo e revista Manchete, apontou-o como um dos 10 homens mais elegantes do Brasil, ao lado de JK, o presidente Bossa Nova , do embaixador Vasco Leitão da Cunha, do jóquei Francisco Irigoyen, entre outros. A justificativa de Ibrahim, publicada ao lado de um foto do compositor, é um primor: Para muitos, pareceria estranha a escolha de Ataulfo Alves.

Mas, reflitam: é ou não é um brasileiro alinhado? Homem fino, de gestos educados, sempre bem vestido, personifica uma espécie de elegância do morro. No palco, mesmo possuído pelo ritmo de seus sambas, tem mímica elegantíssima. O bem trajar de Ataulfo é um tanto quanto displicente, mas em qualquer ocasião ele aparece apropriadamente vestido, irradiando bom humor .

Comentando tempos depois a eleição, Ataulfo disse que o terno mais novo que usava em 1961 tinha 10 anos de existência. Mas bastou para, dali em diante, passar a ser procurado por alfaiates e lojas comerciais, que lhe ofereciam roupas como forma de propaganda. Ou seja, o sambista virou modelo e manequim. A esquerda de botequim se mordia - de raiva e inveja.