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Com retrospectiva no Rio, Cronenberg diz não acreditar na alma

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Bolívar Torres, Jornal do Brasil

RIO - A partir da próxima terça-feira, a Caixa Cultural dá início à autópsia da autópsia. A retrospectiva Em carne viva faz um panorama dos 18 filmes do diretor canadense David Cronenberg, um dissecador atento do corpo humano não apenas da matéria em si, mas de suas pulsões, manifestações e influências. As exibições serão acompanhadas de um curso e seminários para debater, com a presença de pesquisadores das áreas de cinema, arte, mídia, filosofia e medicina, algumas das questões deixadas por suas controversas obras, como as novas tecnologias biológicas, os modelos narrativos e as práticas e experiências corporais. Em ativa desde o final dos anos 60, e flutuando pelas mais diversas abordagens do terror ao drama psicológico, assim como pelo cinema experimental e o filme de gênero Cronenberg não se cansou, ao longo dessas quatro décadas, de levar aos últimos limites alguns das mais espinhosos dilemas da modernidade.

Com sua voz grave e monocórdia, cujo tom taciturno é cortado por algumas discretas risadas, o cineasta reafirma ao Jornal do Brasil, por telefone de Toronto, Canadá, sua crença inabalável na matéria física como princípio de verdade.

Acho que o corpo humano é o que nos somos em primeiro lugar. Pensando em termos existenciais, é tudo. Não acredito em uma alma. Por isso, se você for analisar a condição humana, vai analisar o corpo. No cinema, é preciso de algo para fotografar, e o instrumento artístico é o corpo, os olhos, as roupas; tudo o que possa ser tocado.

A busca pela anatomia aparece já de forma radical em seus primeiros filmes. Filho da cultura underground canadense e influenciado pelas obras de cineastas como Kenneth Anger e Ed Emschwiller, Cronenberg expande, a partir dos anos 70, os códigos do filme de terror. Obras como Calafrios, Filhos do medo e Scanners, sua mente pode destruir tiram do corpo humano sua condição de simples artefato do horror para transformá-lo em instrumento de reflexão.

Dirigir obras de terror era algo natural para mim lembra. Nunca pensei em fazer algo novo a partir de um gênero. Aliás, nunca pensei no gênero como um todo. Simplesmente estava tentando fazer filmes.

Dando ênfase às mutações físicas (Rabid, de 1977, com a estrela pornô Marylin Chambers, faz da cirurgia plástica um catalisador da desordem social) trouxe uma nova abordagem ao gênero ao ponto de criar as bases de um sub-gênero, o terror do corpo ou terror venéreo.

Não somos os mesmos que éramos a 2 mil anos trás. É certo que não estamos mais tão sujeitos a forças naturais. Mas isto vem desde o início da tecnologia mais primitiva. Evoluímos não apenas no plano cerebral e intelectual, mas também físico. Nem sempre há uma conciliação consciente entre os seres e as novas tecnologias. Na maioria das vezes, não controlamos nossa própria evolução.

Apesar do seu sucesso comercial (Rabid e A mosca fizeram excelente bilheteria), Cronenberg só começou a ser levado realmente a sério pela crítica a partir de Gêmeos Mórbida semelhança, sobre dois irmãos gêmeos ginecologistas que se tornam dependentes químicos, obcecados por uma mulher mutante de vagina anormal. Muito antes disso, porém, já antecipava discussões que hoje estão mais atuais do que nunca. Videodrome, de 1983, profetizava um mundo contaminado pelas imagens.

Todos somos enormemente moldados pela mídia, ao mesmo tempo que a moldamos reflete. Na época que fiz Videodrome, isso já era algo óbvio, mesmo que muitos não percebessem, e está ainda muito mais óbvio agora, com o surgimento de novas ferramentas audiovisuais. O filme, aliás, é sobre a internet.

Nos filmes de Cronenberg, a filosofia não aparece no discurso, mas nas camadas. Não se pode fotografar um conceito, apenas a matéria física. Seu trabalho é intuitivo não se trata de um processo intelectual e sim visceral. No livro de entrevistas que concedeu ao crítico francês Serge Grünberg, o canadense disse que na hora de pensar seus filmes, precisava transformar em palavra a carne para, em seguida, filmar a carne , pois lhe é impossível registrar a palavra.

Não sou, porém, obcecado pelo corpo ressalta. Apenas acredito que ele nos defina. E não falo apenas numa questão cirúrgica, mas também nas relações humanas.

Nessa busca pela verdade física, o diretor encontrou, nos últimos anos, um parceiro precioso. Mais do que o roteiro ou a mise-en-scène, o corpo do ator Viggo Mortensen, que protagonizou Marcas da violência (2005) e Senhores do crime (2007), virou praticamente um campo de experimentação à parte. Basta lembrar da violenta e antológica cena de Senhores do crime em que Mortensen luta, sozinho e nu, contra dois homens numa sala de banho turco em Londres.

Acredito que a profissão de um ator é doar totalmente o seu corpo. Os corpos de um elenco são instrumentos para serem orquestrados. Minha colaboração com Viggo é maravilhosa porque ele aceita se doar como poucos.