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Cartas de Dostoiévski permitem investigar criação do escritor

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Luiz Horácio*, Jornal do Brasil

RIO - O que ainda não foi dito a respeito de Dostoiévski, para o bem e para o mal? De Bakthin à miríade de dissertações e teses, passando por resenhas como esta, tanto autor quanto obra já foram incansavelmente analisados. Mas sempre há algo a ser explorado. No caso, a correspondência de Dostoiévski.

Dividido em quatro partes (os primeiros anos; a prisão e os anos de exílio em solo pátrio; o exílio no estrangeiro; o regresso à Rússia e a consagração como escritor), Dostoiévski: correspondências (1838 -1880), título de estreia da editora 8Inverso, num primeiro momento, encanta o leitor, mas, à medida em que se adentra seus meandros, os problemas se fazem notar. Um deles, o fato de se tratar de correspondência unilateral, não há contraponto, e o material do autor é o núcleo único da argumentação. Diante disso a utilização do plural no título soa no mínimo esdrúxula, pois não há troca de cartas, não se estabelece correspondência, muito menos correspondências. Um belo exemplo de livro de cartas é Walter Benjamin Gershom Scholem (Perspectiva), em que o leitor poderá testemunhar as afinidades e as discordâncias acerca da religião, da política e o embate de idéias filosóficas. As opiniões sobre títulos de Brecht, Kafka, Adorno, entre outros, legitimam seu status de obra-prima do gênero.

Para os curiosos

Dentre os pontos de maior relevância da correspondência está o fato de ela não se destinar exclusivamente aos grandes estudiosos e admiradores do escritor russo, mas também a todo curioso ou admirador da grande literatura. Não exclusivamente da obra de Dostoiévski. Todo aquele que não for um dedicado estudioso da vida e obra do autor encontrará motivos mais que suficientes para a leitura de seus grandes títulos. Já os aficcionados não encontrarão nenhuma novidade, muitas vezes perceberão a tediosa abordagem acerca das parcas condições econômicas, as ameaças de acabar com a própria vida, ora enforcando-se, ora se jogando num rio, a epilepsia.

O autor atormentado pode ser notado em episódio de 1871 que antecede seu retorno à Rússia. O medo de ter sua obra confiscada o leva a queimar todos seus manuscritos produzidos no exterior.

Importante ressaltar que a repetição é também forte característica das cartas reunidas. Dostoiévski escreveu praticamente para pagar dívidas, liquidar empréstimos em última instância, sobreviver. A sinceridade do autor chega a ser comovente. Revela, sobretudo, sua incapacidade de lidar com a realidade. Em inúmeras cartas o motivo maior é a solicitação de envio de dinheiro por familiares ou adiantamentos por parte de editores. A repetição resulta dos tormentos do autor.

Vale dizer que inúmeros aspectos salientados nas cartas podem ser confirmados nos romances de Dostoiévski. O autor esteve preso, foi lá que aprendeu a conhecer o povo russo. Vivi em suas vidas, e por isso acredito conhecê-los muito bem , escreve.

Essa experiência serviu como matéria-prima para Recordações da casa dos mortosCrime e castigo,/i>. É neste romance indispensável que encontramos a frase: É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando suas prisões . Jogador compulsivo, quando de sua estada em Genebra perde uma pequena fortuna nas mesas de jogo e isso o inspira a escrever O jogador.

A leitura das correspondências de Dostoievski é um passaporte para o mundo do autor, para investigar o seu momento de criação, a elaboração de seus romances, contos e crônicas em jornais. A constante comiseração do autor beira o tédio. Não bastasse tudo isso ainda tem a morte da mulher, a morte da filha de dois meses.

O leitor encontrará impressões de Dostoiévski acerca de autores e obras da maior relevância: Direi apenas que de todas as obras da literatura cristã, considero Dom Quixote a mais perfeita. Mas Dom Quixote é nobre apenas por ser, ao mesmo tempo, cômico .

A admiração, embora de curta duração, por Turgueniev: É uma pessoa esplêndida! Eu quase me encantei também por ele. Um escritor bastante talentoso, um aristocrata . Sobre Balzac: É ótimo! Seus personagens são a criação de uma inteligência capaz de abarcar tudo não o espírito da época, mas milênios inteiros, com todos os seus embates, contribuíram para tal desenvolvimento e libertação da alma do homem .

De Walter Scott, considerado o criador do romance histórico, diz: Aos 12, li avidamente Walter Scott durante as férias de verão, e certamente aquela leitura estimulou extraordinariamente a minha imaginação e sensibilidade e levou-me por bons caminhos, e não pelo mal . Na carta em que recomenda a leitura de Scott, faz o mesmo com todos os livros de Dickens, sem exceção . Também elogia Puchkin e Gogol.

Repreende o irmão Mikhail por menosprezar os franceses Racine e Corneille. ... E o Aquiles de Racine não é da mesma raça que o de Homero? Eu admito, Racine furtou de Homero, mas que estilo! . Continua: E que tal Fedra? Meu irmão, se você não concordar que Fedra é a mais elevada e pura poesia, não sei o que pensar de você. Ora, há a força de um Shakespeare nela, ainda que a matéria-prima seja o gesso de Paris ao invés do mármore .

Sobre Corneille: Não acredito que você tenha sequer lido ele; por isso você fala uma tolice daquelas. Você não sabe que Corneille, com suas figuras titânicas e seu espírito romântico, quase se iguala a Shakespeare? Seu pobre coitado! .

Dostoiévski: correspondências (1838-1880) é um quebra-cabeças onde inúmeras peças jamais deixarão de faltar. No entanto de leitura indispensável a quem se atrever a buscar entender um pouco da mente desse moralista, conservador capaz de criar uma obra da dimensão de Os irmãos Karamazov, na qual o personagem Ivan diz que se Deus não existe, tudo é permitido , de Os demônios, em que prevê a derrocada do socialismo. Trata-se do mesmo autor que influenciaria Nietzsche. Freud também engrossa a lista.

Omissão de trechos

Um ponto negativo é o vazio provocado pela omissão de trechos das cartas. O tradutor omite e informa o teor do trecho desprezado Imperdoável: toda e qualquer informação contida nas cartas é relevante. Se escolheu tal carta que a publique na integra. Por exemplo, na carta XVI ao seu irmão Mikhail omite-se trecho onde Dostoiévski conta da visita de um homem cujos interesses menores o teriam enraivecido. Qual o motivo da raiva?

Outro problema é a revisão. Na carta VII ao seu irmão Mikhail datada, de 4 de maio de 1845, Dostoiévski diz que não poderá ir a Reval. A nota explica que Mikhail viveu ali entre 1830 e 1840. Na carta XXIII uma nota informa que M. A. Fonvisin foi o único meio de comunicação de Dostoiévski com o mundo interior quando de sua prisão. Obra desse porte é documento e documento não admite desleixo.

* Jornalista e escritor, autor de Perciliana e o pássaro com alma de cão (Conex) e Nenhum pássaro no céu (Fábrica de Leitura).