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Safra de livros infantis recontam mitos africanos e indígenas

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Elaine Pauvolid, Carolina Leal e Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Adriana Lisboa fez de novo. Esperamos que continue fazendo por muitos e muitos livros. Em 10 anos de carreira, iniciada com Os fios da memória, publicou, para adultos, quatro romances e um livro de contos. Para o público infanto-juvenil, Língua de trapos e Contos populares japoneses>, que obtiveram o selo de altamente recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil. A autora ainda recebeu o Prêmio José Saramago, com Sinfonia em branco.

Por estas e outras que começamos dizendo que Adriana Lisboa fez de novo. Seu livro mais recente, A sereia e o caçador de borboletas, lançado pela Rocco, narra a história de seres impossíveis vivendo situações raras. No universo da fantasia, terreno em que crianças e uma boa quantidade de artistas se sentem mais à vontade e mais verossímeis, uma sereia morena, com seu famoso rabo de peixe e pezinhos ligeirinhos e isso vai por conta das ilustrações de Rui de Oliveira, que parece ter-se baseado numa rara variante do mito guia marinheiros portugueses perdidos há 300 anos em mares revoltos. A salvação chega quando outro personagem, o caçador de borboletas que não aspira prender as borboletas, consegue realizar seu maior desejo.

A caracterização do personagem masculino é um momento de alumbramento do livro. Caçador que não quer prender sua presa, nem destruí-la, quer tão-somente a imagem poética que ela representa, para citar Gaston Bachelard. Nas palavras da autora: 'O que ele caçava mesmo era um movimento: uma par de asas se abrindo e se fechando, um corpinho leve se deslocando do chão'.

Há na narrativa a presença de conteúdos filosóficos e poéticos já presentes em Os fios da memória. O relato do passado como reconstrução ativa quem resgata participa da história como co-autor ressurge neste livro como marca autoral. De novo, nas palavras da autora: 'Aquele navio tinha saído de um porto (...) 300 anos antes, ao raiar do dia. Tratava-se, na verdade, do último dia de uma época em que coisas dessa natureza ainda aconteciam'. Mais adiante, prossegue: 'Agora só o que levava [o navio] nos porões eram flores secas e pedras de praias secretas, descobertas em algum momento do caminho e imediatamente esquecidas, para que continuassem secretas'.

Diálogo nas imagens

Quanto às ilustrações, a parceria bem sucedida com Rui de Oliveira em Língua de trapos se repete. Intensificam o encanto da história pelos detalhes. A versão mitológica da sereia com pés confere ao personagem a postura ereta em terra. Quando está no mar, as ondas aparecem como uma imensa saia, dando base à sustentação da mesma postura. Neste caso, lembra o mito africano, Iemanjá.

As imagens dialogam com o texto de Adriana Lisboa contribuindo para a estrutura da narrativa. Ambos os personagens, feminino e masculino, diferem da tradicional e patriarcal visão latino-americana de homem e mulher. O homem não quer aprisonar a feminilidade, caracterizada pelas borboletas, e a figura feminina não é retratada como submissa, ao erguer-se sobre os pés em terra e sobre as ondas no mar, como rainha ativa, uma poderosa Iemanjá, a mãe dos peixes.

O livro contribui para formação dos pequenos leitores que poderão ir mais além nas concepções sobre amor, liberdade, masculino, feminino e arte. E por esta coesão entre ilustração e texto, poderíamos retificar o início da resenha e dizer não só que Adriana fez de novo, mas que Adriana e Rui fizeram de novo um grande livro para os pequenos e para nós.

A fantasia como poder curativo

Ao sair da aldeia atrás de penas de arara para fazer um cocar, o jovem indiozinho, de nome Botoque, não imaginava que se envolveria em uma enrascada. Após entrar em um ninho de aves encantadas, ele fica preso no alto da pedra escarpada. Este é apenas o início da aventura, que levará o curumim a descobrir o tear, a caça e o fogo com um esperto jaguar. E reza a lenda que, graças a Botoque, os homens não tiveram que comer carne crua.

A história contada em Botoque e Jaguar: a origem do fogo traz aos pequenos o mito que narra como o homem descobriu a carne assada. Com uma prosa poética agradável, Claudia Roquette-Pinto reúne em seu primeiro livro infantil a adaptação de lendas indígenas contidas no livro O cru e o cozido, de Claude Lévi-Strauss, e falas inspiradas pelo conto Meu tio, o Iauaretê, de João Guimarães Rosa.

Não inventei nada, apenas fiz adaptações de partes que poderiam ficar muito pesadas para uma história infantil, considerando os costumes ocidentais explica a autora. Como a parte em que o Botoque mataria a mulher do Jaguar. Eu não a incluí. Coloquei apenas que ele a fere no pé. As lendas indígenas são muito mais diretas e sanguinárias.

Com ilustrações de Apo Fousek, o livro mistura o pensamento sobre as relações e os sentimentos humanos com a universo de fantasia do mito.

Acho que as lendas trazem essa dimensão da origem das coisas, mas, também, pulsões, dramas, conflitos. Isso tudo envolvendo a fantasia, que acredito ter até um poder curativo e de transformação.

O livro que será lançado na segunda-feira, às 19h, na livraria Travessa, de Ipanema é o terceiro a sair na coleção Mãe Brasil, da editora Língua Geral, que traz ao universo das histórias infantis as lendas indígenas brasileiras, muitas vezes restritas aos livros de antropologia ou à tradição oral desses povos. No evento, haverá o lançamento conjunto de O leão e o coelho saltitão, do escritor angolano Ondjaki, baseado na contação de histórias da tradição africana.

A ilha do tesouro de Stevenson

Robert Louis Stevenson escreveu 'O duende da garrafa' em Samoa, uma das ilhas dos Mares do Sul, onde o escritor, descendente de um clã escocês, passou os últimos dias de sua vida, não se sabe muito bem por quê. A história, traduzida para a língua samoana, foi publicada pela primeira vez numa revista missionária. Bastou para que toda a população da ilha encarasse Stevenson como o herói do conto, tratando-o com um misto de reverência, piedade, inveja e aversão.

É que os samoanos não conheciam em 1891 a diferença entre ficção e realidade donde o duende da garrafa tinha de ser propriedade do escritor.

Está aí uma razão mais que razoável para a decisão de Stevenson de se mudar para a ilha, comprar um bom pedaço de terra e ali construir uma enorme casa. E, mesmo com problemas de saúde, suportar um clima terrível que quase o levou à morte. Além de aturar violentos conflitos familiares, pois sua família, principalmente a mulher, detestava viver em Samoa.

Alex Capus, autor do recém-lançado Viagem pela luz das estrelas, acredita ter encontrado uma outra, e não menos fascinante, explicação. Diz o autor que Stevenson sempre afirmou que o romance A ilha do tesouro era fruto de pura imaginação. Mas pergunta Capus e se tudo fosse verdade e, durante anos e anos, gerações de caçadores de tesouro tenham cavado no lugar errado exatamente porque o escocês queria manter o segredo para si?