ALVARO COSTA E SILVA, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Como Casanova arrumava tempo para fazer o que todo mundo imagina que ele fazia sem dar um intervalo? Na introdução do seu livro Casanova: muito além de um grande sedutor, recém-lançado pela Zahar, Ian Kelly escreve que o famoso libertino ficaria pasmado ao descobrir que hoje ele é lembrado quase exclusivamente por sua vida sexual. Ora, chapados ficamos nós ao saber que o cara, um intelectual de saber enciclopédico, trabalhou como violinista, soldado, alquimista, curador espiritual e bibliotecário, tendo sido educado para o sacerdócio. Passou a maior parte da vida longe da Veneza natal, engajado nessas profissões, de Paris a São Petesburgo, de Londres a Praga, Dresde, Amsterdã, Viena e Istambul. Juntou e perdeu fortunas. Fundou uma loteria estatal, escreveu 42 livros, além de peças, tratados filosóficos e matemáticos, libretos de ópera, obras sobre calendários, leis canônicas e geometria cúbica. Traduziu a Ilíada de Homero para o italiano moderno, foi refinado gourmet e praticante de cabala, além de ter escrito um romance de ficção científica em cinco volumes (!). Mesmo assim, quando morreu, em 1798, aos 73 anos, o fato passou despercebido, e o local do túmulo caiu em esquecimento. Nem uma viuvinha foi lá deixar flores e verter uma lágrima.
O grande legado de Giacomo Casanova, que lhe deu fama internacional, é uma única obra póstuma: História da minha vida, que permaneceu por toda uma geração sem ser publicada, só se tornando disponível em sua totalidade a partir da década de 60 do século passado. No original, são 3.800 páginas em fólio, que abrangem sua vida de 1725 a 1774. No Brasil, há uma edição, pela José Olympio, em 10 volumes, publicada em 1957 - uma raridade nos sebos.
Para Ian Kelly, 'não existe nada semelhante escrito nessa época, e pouca coisa que se possa comparar na história das biografias'. Casanova chegou a escrever por 13 horas seguidas, principalmente de memória (daí os muitos erros de data, local e pessoa, que são fáceis de detectar). Também se valeu de cartas e anotações que manteve de forma intermitente, e que deixou por toda a Europa com amigos e amantes, e depois solicitou que lhe fossem enviadas. 'Ele escreveu para salvar sua alma, ou assim costumava declarar, mas esta era uma expressão muito usada por ele para não se referir especificamente à sua tão importante vida sexual, e até mesmo a seu pênis', esclarece o biógrafo.
Por tudo e por todas, não é de espantar que um homem que dedicou grande parte de sua vida aos prazeres do momento tenha caído em profunda melancolia na velhice. Escrever foi um tratamento sugerido por seu médico para evitar a loucura ou a morte por tristeza. A cena é patética, lembrando as caracterizações no cinema feitas por Marcello Mastroianni em Casanova e a Revolução, de Ettore Scola, e a de Donald Sutherland no Casanova de Fellini: o ex-sedutor escrevia num velho castelo da Boêmia, longe da sua pátria, com poucos amigos por perto e desprezado pela criadagem, verdadeira relíquia do passado e alvo da chacota das gentes da cidade de Deux, onde, em teoria, trabalhava como bibliotecário. Lá morreu.
Memórias revolucionárias
Ficaram as memórias, que Ian Kelly usa como guia para sua biografia e bota nos píncaros: 'Casanova apresentou, pela primeira vez no cânone ocidental, a ideia de que a compreensão do sexo, com toda sua irracionalidade e seu potencial destrutivo, é uma chave para se entender o eu. A história da minha vida é um texto revolucionário, que fascina por muitas outras coisas além de seus catálogos de conquistas amorosas'.
De fato, são memórias menos libertinas que voyeurísticas, similar às atuais biografias autorizadas ou não-autorizadas de celebridades. O teatro foi essencial para Casanova, cuja obra é uma grande commedia. Na época dele em Veneza, havia teatros de comédia em quase todas as paróquias, lotados todas as noites. Todo mundo, até gondoleiros, recebiam ingressos de graça. A cidade exportava atores, cantores, dançarinos e companhias de ópera para o continente e até a América. Casanova é produto desse fogo.
Ele era filho de atores. Ou, pelo menos, de uma atriz: Zanetta Farussi, conhecida como La Buranella. A paternidade do primeiro filho, Giacomo, fica aberta a especulações, assim como a de todos os seus quatro irmãos. Zanetta, comediante nada convencional, trabalhava com teatro numa época em que isso significava, para uma mulher, ter uma carreira dupla. Casanova acreditava que podia ser filho do empresário Micheli Grimani, ou de Giuseppi Imer, administrador teatral.
De acordo com Ian Kelly, não havia nada que ele amasse mais que uma reviravolta inesperada, uma confusão de identidades. Uma de suas primeiras experiências sexuais foi a de se vestir de mulher. Um de seus maiores amores foi uma mulher que no palco sempre representou papéis de homem.
Bellino era um castrato mascarado, ou seja, uma mulher disfarçada de homem castrado para atender aos propósitos de sua carreira musical. Sem saber disso, a princípio Casanova ficou docemente pertubado por desejar outro homem e não deixou de empregar a força para descobrir o que de fato existia entre as pernas de Bellino. Tomou um susto. Mesmo assim, ainda achou que devia ser um 'gigantesco clitóris'. Na verdade, era um pênis falso, necessário para evitar a detecção pelos árbitros moralistas da ópera e da Igreja. Bellino que se revela a cantora Teresa Lanti usava, nas palavras de Casanova, 'uma espécie de tripa macia, grossa como um dedo polegar, branco, com uma superfície muito lisa... preso no centro de uma peça oval de couro transparente muito fino... 12 a 15 centímetros por cinco de largura'. Usando ou não esse troço, eles foram felizes enquanto o romance durou.
Currículo sexual
As marcas na carabina de Casanova são mais de 100. A história de sua vida sexual vai desde o dia em que perdeu a virgindade, aos 17 anos, e continua por mais 37 anos. Uma média de quatro parceiras por ano, o que, convenhamos, é fichinha perto da carreira de um ator pornô como Rocco Siffredi, outro italiano, que teve intercurso com mais de 4 mil mulheres. Siffredi usou seu membro de grandes proporções mas, ao que se sabe, nunca escreveu um romance de ficção científica em cinco volumes.